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Frédéric Bastiat
Mas há ainda outro fato que também é comum aos homens.
Quando podem, eles desejam viver e prosperar uns a expensas dos
outros. Não vai aí uma acusação impensada, proveniente de um es-
pírito desgostoso e pessimista. A história é testemunha disso pelas
guerras incessantes, as migrações dos povos, as perseguições religio-
sas, a escravidão universal, as fraudes industriais e os monopólios,
dos quais seus anais estão repletos.
Esta disposição funesta tem origem na própria constituição do ho-
mem, no sentimento primitivo, universal, invencível que o impele
para o bem-estar e o faz fugir da dor.
p
ropriedAde
e
eSpoliAção
O homem não pode viver e desfrutar da vida, a não ser pela assi-
milação e apropriação perpétua, isto é, por meio da incessante apli-
cação de suas faculdades às coisas, por meio do trabalho. Daí emana
a propriedade.
Por outro lado, o homem pode também viver e desfrutar da vida,
assimilando e apropriando-se do produto das faculdades de seu seme-
lhante. Daí emana a espoliação.
Ora, sendo o trabalho em si mesmo um sacrifício, e sendo o ho-
mem naturalmente levado a evitar os sacrifícios, segue-se daí que — e
a história bem o prova — sempre que a espoliação se apresentar como
mais fácil que o trabalho, ela prevalece. Ela prevalece sem que nem
mesmo a religião ou a moral possam, nesse caso, impedi-la.
Quando então se freia a espoliação? Quando se torna mais árdua e
mais perigosa do que o trabalho.
É bem evidente que a lei deveria ter por finalidade usar o poderoso
obstáculo da força coletiva contra a funesta tendência de se preferir
a espoliação ao trabalho. Ela deveria posicionar-se em favor da pro-
priedade contra a espoliação.
Mas, geralmente, a lei é feita por um homem ou uma classe de
homens. E como seus efeitos só se fazem sentir se houver sanção e
o apoio de uma força dominante é inevitável que, em definitivo, esta
força seja colocada nas mãos dos que legislam.
Este fenômeno inevitável, combinado com a funesta tendência que
constatamos existir no coração do homem, explica a perversão mais ou
menos universal da lei. Compreende-se então por que, em vez de ser
um freio contra a injustiça, ela se torna um instrumento da injustiça,
15
A Lei
talvez o mais invencível. Compreende-se por que, segundo o poder
do legislador, ela destrói, em proveito próprio, e em diversos graus,
no resto da humanidade, a individualidade, através da escravidão; a
liberdade, através da opressão; a propriedade, através da espoliação.
v
ÍtimAS
dA
eSpoliAção
legAl
É próprio da natureza dos homens reagir contra a iniquidade da
qual são vítimas. Então, quando a espoliação é organizada pela lei, em
prol das classes dos que fazem a lei, todas as classes espoliadas tentam,
por vias pacíficas ou revolucionárias, participar de algum modo da
elaboração das leis. Estas classes, segundo o grau de lucidez ao qual
tenham chegado, podem-se propor dois objetivos bem diferentes ao
perseguir a conquista de seus direitos políticos: ou querem fazer ces-
sar a espoliação legal ou aspiram a participar dela.
Malditas, três vezes malditas as nações nas quais este último obje-
tivo domina as massas e estas vêm a deter o poder de legislar!
Até então a espoliação legal era exercida por um pequeno número
de pessoas sobre as demais. É assim que se observa entre os povos
cujo direito de legislar está concentrado em algumas mãos. Mas, uma
vez tornado universal, busca-se o equilíbrio na espoliação universal.
Em lugar de extirpar o que a sociedade continha de injustiça,
generaliza-se esta última. Tão logo as classes deserdadas recobram
seus direitos políticos, o primeiro pensamento que as assalta não é o
de livrar-se da espoliação (isto suporia nelas conhecimentos que não
podem ter), mas organizar, contra as outras classes e em seu próprio
detrimento, um sistema de represálias — como se fosse preciso, antes
do advento do reinado da justiça, que uma cruel vingança venha feri-
las, umas por causa da iniquidade, outras por causa da ignorância.
r
eSultAdoS
dA
eSpoliAção
legAl
Não poderiam, pois, ser introduzidas na sociedade mudança e infeli-
cidade maiores que esta: a lei convertida em instrumento de espoliação.
Quais as consequências de semelhante perturbação? Seriam ne-
cessários volumes e mais volumes para descrevê-las todas. Contente-
mo-nos em indicar as mais notáveis.
A primeira é a que apaga em todas as consciências a noção do justo
e do injusto. Nenhuma sociedade pode existir se nela não impera de
algum modo o respeito às leis. Porém, o mais seguro para que as leis
sejam respeitadas é que sejam de fato respeitadas.
16
Frédéric Bastiat
Quando a lei e a moral estão em contradição, o cidadão se acha na
cruel alternativa de perder a noção de moral ou de perder o respeito à
lei, duas infelicidades tão grandes tanto uma quanto a outra e entre as
quais é difícil escolher.
Fazer imperar a justiça está tão inerente à natureza da lei, que lei
e justiça formam um todo no espírito das massas. Temos todos forte
inclinação a considerar o que é legal como legítimo, a tal ponto que
são muitos os que falsamente consideram como certo que toda a jus-
tiça emana da lei. Basta que a lei ordene e consagre a espoliação para
que esta pareça justa e sagrada diante de muitas consciências. A
escravidão, a restrição, o monopólio acham defensores não somente
entre os que deles tiram proveito como entre os que sofrem as suas
consequências.
o
deStino
doS
não
conformiStAS
Tente levantar algumas dúvidas a respeito da moralidade destas
instituições. “Você é — dir-lhe-ão — um inovador perigoso, um utó-
pico, um teórico, um subversivo, você está abalando as bases sobre
as quais repousa a sociedade.” Você dá um curso de moral ou de
economia política?
Aparecerão enviados oficiais para fazer chegar ao governo o se-
guinte propósito:
Que a ciência seja doravante ensinada, não mais somen-
te do ponto de vista da livre-troca (da liberdade, da pro-
priedade, da justiça), como tem acontecido até agora,
mas, e sobretudo, do ponto de vista dos fatos e da legis-
lação (contrária à liberdade, à propriedade e à justiça)
que rege a indústria francesa.
Que, nas cátedras públicas remuneradas pelo Tesouro,
o professor se abstenha rigorosamente de fazer o menor
ataque ao respeito devido às leis em vigor
1
etc.
De sorte que, se existir alguma lei que sancione a escravidão ou o
monopólio, a opressão ou a espoliação sob qualquer forma, não haverá
necessidade sequer de tocar no assunto, pois como se vai tocar no as-
sunto sem abalar o respeito que tal lei inspira? E mais, será necessário
ensinar moral e economia política do ponto de vista desta lei, isto é,
na suposição de que ela é justa pelo simples fato de ser lei.
1
Conselho Geral das manufaturas, da agricultura e do comércio. (Sessão do dia 6 de maio de 1850.)
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