pilhagem. O
que quer que ocorra do
outro lado da linha não está sujeito
aos mesmos princípios éticos e jurídi-
cos que se aplicam deste lado da
linha, de modo que não poderá dar
origem ao tipo de conflitos que a vio-
lação de tais princípios causaria se
ocorresse deste lado da linha. Essa
dualidade permitiu aos reis católicos
da França, por exemplo, manter uma
aliança com os reis católicos da Espa-
nha deste lado da linha e ao mesmo
tempo aliar-se aos piratas que ataca-
vam os barcos espanhóis do outro
lado da linha.
[12] Pascal, Blaise. Pensées. Londres:
Penguin Books, 1966, p. 46 [em tra-
dução de Novos Estudos com base no
francês].
[13] Hobbes, Thomas. Leviathan.
Londres: Penguin Books, 1985
[1651], p. 187; Locke, John. The second
treatise of civil government and a letter
concerning toleration. Oxford: B.
Blackwell, 1946 [1690], § 49 [em tra-
dução do autor].
[14] Sobre as diferentes concepções
do contrato social, ver Santos, Boa-
ventura de S. Toward a new legal com-
mon sense,op.cit.,pp.30-39.
[15] De acordo com a bula,“os índios
eram verdadeiros homens e [...] não
eram capazes de entender a fé cató-
lica, mas, de acordo com as nossas
informações, desejam ardentemente
recebê-la” (Papa Paulo III. Sublimis
Deus, 1537 <www.papalencyclicals.net/
Paul03/p3subli.htm, acessado em 22/
9/2006>).
[16] Cf.,por exemplo,Emerson,Bar-
bara. Leopold II of the Belgians: king of
colonialism. Londres: Weidenfeld and
Nicolson, 1979; Hochschild, Adam.
King Leopold’s ghost: a story of greed,
terror, and heroism in colonial Africa.
Boston:Houghton Mifflin,1999.
A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimento
moderno. Mais uma vez, a zona colonial é por excelência o universo
das crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de forma
alguma podem ser considerados como conhecimento e por isso estão
para além do verdadeiro e do falso. O outro lado da linha alberga ape-
nas práticas mágicas ou idolátricas, cuja completa estranheza condu-
ziu à própria negação da natureza humana de seus agentes.Com base
nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade
humana,os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de
que os selvagens eram subumanos.A questão era:os índios têm alma?
Quando o papa Paulo III respondeu afirmativamente em sua bula
Sublimis Deus, de 1537, fê-lo concebendo a alma dos povos selvagens
como um receptáculo vazio, uma anima nullius, muito semelhante à
terra nullius
15
, o conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a
ocupação dos territórios indígenas
. Com base nessas concepções
abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da tensão
entre regulação e emancipação,aplicada a este lado da linha,não entra
em contradição com a tensão entre apropriação e violência,aplicada ao
outro lado da linha.
A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhas
abissais jurídica e epistemológica,mas em geral a apropriação envolve
incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica
destruição física,material,cultural e humana.Na prática,é profunda a
ligação entre a apropriação e a violência. No domínio do conheci-
mento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias
e de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão até a
pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, ao
passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso das lín-
guas próprias em espaços públicos, a adoção forçada de nomes cris-
tãos,a conversão e a destruição de símbolos e lugares de culto e a prá-
tica de todo tipo de discriminação cultural e racial.
No tocante ao direito,a tensão entre apropriação e violência é par-
ticularmente complexa em virtude de sua relação direta com a extração
de valor: tráfico de escravos e trabalho forçado, uso manipulador do
direito e das autoridades tradicionais por meio do governo indireto
(indirect rule), pilhagem de recursos naturais, deslocação maciça de
populações, guerras e tratados desiguais, diferentes formas de apar-
theid e assimilação forçada etc. Enquanto a lógica da regulação/eman-
cipação é impensável sem a distinção matricial entre o direito das pes-
soas e o direito das coisas,a lógica da apropriação/violência reconhece
apenas o direito das coisas, sejam elas humanas ou não. A versão
extrema desse tipo de direito, irreconhecível deste lado da linha, é o
direito de propriedade pessoal do Estado Livre do Congo pelo rei Leo-
poldo II da Bélgica [a partir de 1885]
16
.
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NOVOS ESTUDOS 79
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[17] Essa negação da humanidade é
denunciada com extrema lucidez por
Franz Fanon ( Black skin, white masks,
op.cit.;The wretched of the Earth. Nova
York: Grove Press, 1963). O radica-
lismo da negação fundamenta sua
defesa da violência como uma dimen-
são intrínseca da revolta anticolonial,
aspecto sobre o qual Fanon e Gandhi
divergiram ainda que partilhassem
uma luta comum.
[18] Sobre Guantánamo e tópicos
relacionados, ver, por exemplo,
Amann, Diane M. “Guantánamo”.
Columbia Journal of Transnational Law,
vol.42,n.2,2004,pp.263-348;Steyn,
Johan. “Guantanamo Bay: the legal
black hole”. International and Compa-
rative Law Quarterly,vol.53,n.1,2004,
pp. 1-15; Dickinson, Laura. “Torture
and contract” e Sadat,Leila N.“Ghost
prisoners and black sites: extraordi-
nary rendition under international
law”. Case Western Reserve Journal of
International Law, vol. 37, n. 2-3, 2005-
06,pp.267-75 e 309-42.
Existe portanto uma cartografia moderna dual nos âmbitos episte-
mológico e jurídico. A profunda dualidade do pensamento abissal e a
incomensurabilidade entre os termos da dualidade foram implementa-
das por meio das poderosas bases institucionais — universidades,cen-
tros de pesquisa,escolas de direito e profissões jurídicas — e das sofis-
ticadas linguagens técnicas da ciência e da jurisprudência.O outro lado
da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e
da ilegalidade e para além do verdade e da falsidade. Juntas, essas for-
mas de negação radical produzem uma ausência radical: a ausência de
humanidade, a subumanidade moderna. Assim, a exclusão se torna
simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres subumanos
não são considerados sequer candidatos à inclusão social (a suposta
exterioridade do outro lado da linha é na verdade a conseqüência de seu
pertencimento ao pensamento abissal como fundação e como negação
da fundação).A humanidade moderna não se concebe sem uma subu-
manidade moderna
17
.A negação de uma parte da humanidade é sacrifi-
cial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte da
humanidade se afirme como universal (e essa negação fundamental
permite,por um lado,que tudo o que é possível se transforme na possi-
bilidade de tudo e,por outro,que a criatividade do pensamento abissal
banalize facilmente o preço da sua destrutividade).
Meu argumento é que essa realidade é tão verdadeira hoje quanto
era no período colonial.O pensamento moderno ocidental continua a
operar mediante linhas abissais que separam o mundo humano do
mundo subumano, de tal modo que princípios de humanidade não
são postos em causa por práticas desumanas. As colônias represen-
tam um modelo de exclusão radical que permanece no pensamento e
nas práticas modernas ocidentais tal como no ciclo colonial. Hoje,
como então,a criação e a negação do outro lado da linha fazem parte de
princípios e práticas hegemônicos. Atualmente, Guantánamo repre-
senta uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico
abissal,da criação do outro lado da fratura como um não-território em
termos jurídicos e políticos,um espaço impensável para o primado da
lei, dos direitos humanos e da democracia
18
. Contudo, seria um erro
considerá-la exceção. Existem muitas Guantánamos, desde o Iraque
até a Palestina e Darfur.Mais do que isso,existem milhões de Guantá-
namos nas discriminações sexuais e raciais, quer na esfera pública,
quer na privada:nas zonas selvagens das megacidades,nos guetos,nas
prisões, nas novas formas de escravidão, no tráfico ilegal de órgãos
humanos,no trabalho infantil,na exploração da prostituição.
Neste artigo,começo por argumentar que a tensão entre regulação e
emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e vio-
lência, e de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não é
questionada pela existência da segunda. Em seguida, sustento que as
76 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL
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Boaventura de Sousa Santos
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