Para além do pensamento abissal boaventura de Sousa Santos



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[58] Cf. Lansing, John S. “Balinese

‘water temples’ and the management

of irrigation”. American Anthropolo-

gist, vol. 89, n. 2, 1987, pp. 326-41;

Priests and programmers: technologies

of power in the engineered landscape of

Bali. Princeton: Princeton University

Press, 1991; Lansing, John S. e Kre-

mer, James N. “Emergent properties

of Balinese water temples: coadapta-

tion on a rugged fitness landscape”.

American Anthropologist, vol. 95, n. 1,

1993,pp.97-114.

[59] Cf. Eze, Emmanuel Ch. (org.).

Postcolonial African philosophy: a criti-

cal reader. Oxford: Blackwell Publis-

hers, 1997; Karp, Ivan e Masolo, Dis-

mas (orgs.). African philosophy as

cultural inquiry. Bloomington: In-

diana University Press,2000;Houn-

tondji, Paulin J. The struggle for mea-

ning: reflections on philosophy, culture,

and democracy in Africa. Athens: Ohio

University Center for International

Studies,2002.

[60] Nessa área os problemas estão

freqüentemente associados à lingua-

gem, a qual de fato é um instrumento

essencial para o desenvolvimento de

uma ecologia de saberes. Desse mo-

do, a tradução deve operar nos níveis

lingüístico e cultural. A tradução cul-

tural representa uma das tarefas mais

desafiantes para filósofos, cientistas

sociais e ativistas no século XXI.

Abordo esse tema com maior detalhe

em Santos, “A critique of lazy rea-

son”, op. cit.; A gramática do tempo,

op.cit.

demonstrar que as seqüências da água geridas pelos sacerdotes da



deusa Dewi-Danu eram as mais eficientes possíveis,portanto mais efi-

cientes do que as do sistema científico de irrigação

58

.

Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global, o



policiamento das fronteiras do conhecimento relevante é de longe

mais decisivo do que as discussões sobre diferenças internas. Assim,

em razão do “epistemicídio” em massa perpetrado nos últimos cinco

séculos, desperdiçou-se uma imensa riqueza de experiências cogniti-

vas.Para recuperar algumas dessas experiências,a ecologia de saberes

recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a tradução

intercultural.Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-oci-

dentais, essas experiências não só usam linguagens diferentes, mas

também diferentes categorias, universos simbólicos e aspirações a

uma vida melhor.

As profundas diferenças entre saberes levantam a questão da

incomensurabilidade, questão utilizada pela epistemologia abissal

para desacreditar a mera possibilidade de uma ecologia de saberes.

Um exemplo ajuda a ilustrar essa questão. Será possível estabelecer

um diálogo entre a filosofia ocidental e a filosofia africana? Formu-

lada assim,a pergunta parece só permitir uma resposta positiva,uma

vez que ambas são filosofia (o mesmo argumento pode ser usado em

relação a um diálogo entre religiões).No entanto,para muitos filóso-

fos ocidentais e africanos não é possível referirmo-nos a uma filo-

sofia africana porque existe apenas uma filosofia,cuja universalidade

não é posta em causa pelo fato de que até o momento seu desenvolvi-

mento se deu sobretudo no Ocidente. Na África, tal é a posição dos

filósofos chamados “modernistas”.Já para os “tradicionalistas” há fi-

losofia africana, mas como ela está embebida na cultura africana é

incomensurável com a filosofia ocidental e deve seguir seu desenvol-

vimento autônomo

59

. Mas, além dessas duas posições, há perspecti-



vas para as quais existem muitas filosofias e é possível haver entre

elas um diálogo, um enriquecimento mútuo. Essas perspectivas se

vêem freqüentemente confrontadas com os problemas da incomen-

surabilidade, da incompatibilidade e da ininteligibilidade recípro-

cas,os quais procuram resolver explorando formas de complementa-

ridade. Tudo depende do uso de procedimentos adequados de

tradução intercultural,mediante os quais é possível identificar preo-

cupações comuns e aproximações complementares, assim como,

está claro, contradições intransponíveis

60

.



O seguinte exemplo ilustra o que está em jogo.O filósofo ganense

Kwasi Wiredu afirma que na língua akan (do grupo étnico a que per-

tence) não é possível traduzir o preceito cartesiano “Cogito,ergo sum”,já

que nela não há palavras para exprimir tal idéia.Em akan,“pensar” sig-

nifica “medir algo”,o que não faz sentido quando ligado à idéia de exis-

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[61]  Wiredu,Kwasi.“Are there cultu-

ral universals?”.Quest,vol.4,n.2,1990,

pp. 5-19; Cultural universals and par-

ticulars: an African perspective. Bloo-

mington: Indiana University Press,

1996.

[62] Sobre essa questão e o debate



que ela suscita, ver Idem. “African

philosophy and inter-cultural dialo-

gue”.Quest,vol.11,n.1/2,1997,pp.29-

41; Osha, Sanya. “Kwasi Wiredu and

the problems of conceptual decoloni-

zation”.Quest,vol.13,n.1/2,1999,pp.

157-64.

[63]  Bloch, Ernst. The principle of



hope.Cambridge,MA:The MIT Press,

1995 [1947],p.241.Sobre a sociologia

das emergências, ver Santos, “A criti-

que of lazy reason”, op. cit.; A gramá-



tica do tempo,op.cit.,pp.93-136.

[64]  De uma perspectiva distinta, a

ecologia dos saberes procura a mesma

complementaridade que Paracelso

identificou entre “Archeus”, a von-

tade elementar na semente e no

corpo, e “Vulcanus”, a força natural

da matéria. Cf. Paracelsus. Mikrokos-



mos und Makrokosmos. Munique:

Eugen Diedrichs Verlag, 1989, p. 33;

ver também Idem. The hermetic and

alchemical writings. Nova York: Uni-

versity Books,1967.

[65] Cf. Santos, Boaventura de S.

Reinventar a democracia. Lisboa: Gra-

diva,1998.

[66] Cf. Epicurus. Epicurus’s morals:

collected and faithfully englished. Lon-

dres: Peter Davies, 1926; Lucretius.



Lucretius on the nature of things. New

Brunswick:Rutgers University Press,

1950. O conceito de clinamen entrou

na teoria literária pela mão de Harold

Bloom,que em A angústia da influência

se serve da noção para explicar a cria-

tividade poética como uma “treslei-

tura” que é antes “transleitura” (o

termo original é “misreading”,um ler-

mal que é também ler-mais-do-que-

bem, ou corrigir). Diz Bloom: “Um

poeta desvia-se do poema do seu pre-

cursor executando um clinamen em

relação a ele” (The anxiety of influence.

Oxford: Oxford University Press,

1973,p.14 [em tradução do autor]).

tir. E o “existo” é igualmente dificílimo de exprimir, porque o equiva-

lente mais próximo é algo semelhante a “estou aí”. O locativo “aí”,

segundo Wiredu,seria suicida tanto do ponto de vista da epistemolo-

gia como da metafísica do cogito

61

. Ou seja, a língua permite exprimir



certas idéias e não outras. Mas isso não significa que a relação entre a

filosofia africana e a filosofia ocidental tenha de ficar por aqui. Como

Wiredu tenta demonstrar,é possível desenvolver argumentos autôno-

mos com base na filosofia africana não só sobre o motivo pelo qual ela

não poder exprimir o cogito,mas também sobre as muitas idéias alter-

nativas que ela pode exprimir e a filosofia ocidental não pode

62

.

A ecologia de saberes não ocorre apenas no nível do lógos,mas tam-



bém no nível do mythos.A idéia de “emergência” ou a noção do “ainda-

não-ser” de Bloch lhe são essenciais

63

. A intensificação da vontade



resulta de uma leitura potencializadora de tendências objetivas, que

empresta força a uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, mediante

uma compreensão mais profunda das possibilidades humanas com

base em saberes que, ao contrário do científico, privilegiam a força

interior em vez da força exterior,a natura naturansem vez da natura natu-

rata

64

. Por meio desses saberes é possível alimentar o valor intensifi-



cado de um empenho, o que é incompreensível do ponto de vista do

mecanicismo positivista e funcionalista da ciência moderna. Desse

empenho surgirá uma capacidade nova de inquirição e indignação,

capaz de fundamentar teorias e práticas novas, umas e outras incon-

formistas,desestabilizadoras e mesmo rebeldes.O que está em jogo é

a criação de uma previsão ativa baseada na riqueza da diversidade não-

canônica do mundo e de um grau de espontaneidade baseado na

recusa a deduzir o potencial do factual.Dessa forma,os poderes cons-

tituídos deixam de ser destino,podendo ser realisticamente confron-

tados com os poderes constituintes. O que importa, pois, é desfami-

liarizar a tradição canônica das monoculturas do saber sem parar aí,

como se essa desfamiliarização fosse a única familiaridade possível.

A ecologia de saberes é uma epistemologia desestabilizadora na

medida em que se empenha numa crítica radical da política do possí-

vel, sem ceder a uma política impossível. Central a uma ecologia de

saberes não é a distinção entre estrutura e agência, mas a distinção

entre ação conformista e aquilo que denomino “ação-com-clina-

men

65

.A ação conformista é uma prática rotineira,reprodutiva e repe-



titiva que reduz o realismo àquilo que existe e apenas porque existe.

Para a minha noção de ação-com-clinamen tomo de Epicuro e Lucrécio

o conceito de clinamen,entendido como o quiddaminexplicável que per-

turba a relação entre causa e efeito,ou seja,como a capacidade de des-

vio que Epicuro atribuiu aos átomos de Demócrito:o clinamen é aquilo

que faz com que os átomos deixem de parecer inertes e revelem um

poder de inclinação,de movimento espontâneo

66

.Ao contrário do que



92 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL

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Boaventura de Sousa Santos



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[67]  Cf.o ensaio introdutório de Fre-

deric Manning em Epicurus, op. cit.,

pp.xxxiv.

se dá na ação revolucionária, a criatividade da ação-com-clinamen não

assenta numa ruptura dramática,mas num ligeiro desvio cujos efeitos

cumulativos promovem complexas e criativas combinações entre

indivíduos e grupos sociais, assim como ocorre entre os átomos

67

. O



clinamen não recusa o passado; pelo contrário, assume-o e redime-o

pelo modo como dele se desvia.Seu potencial para o pensamento pós-

abissal decorre de sua capacidade de atravessar as linhas abissais.

A ocorrência de ação-com-clinamen é em si mesma inexplicável. O

papel de uma ecologia de saberes a esse respeito será somente o de iden-

tificar as condições que maximizam a probabilidade de uma tal ocorrên-

cia e definir o horizonte de possibilidades em que o desvio virá a “ope-

rar”. A ecologia de saberes é ao mesmo tempo constituída por sujeitos

desestabilizadores — individuais ou coletivos — e constitutiva deles.A

subjetividade capaz da ecologia de saberes é uma subjetividade especial-

mente dotada de capacidade,energia e vontade para agir com clinamen.A

própria construção social de uma tal subjetividade necessariamente

implica recorrer a formas excêntricas ou marginais de sociabilidade ou

subjetividade dentro ou fora da modernidade ocidental, formas que se

recusaram a ser definidas de acordo com os critérios abissais.

CONCLUSÃO

A construção epistemológica de uma ecologia de saberes não é

tarefa fácil.A título de conclusão,proponho um programa de pesquisa

no qual podemos identificar três conjuntos principais de questões.

O primeiro conjunto se refere à identificação de saberes e levanta

uma série de questões que têm sido ignoradas pelas epistemologias do

Norte global.A partir de qual perspectiva é possível identificar diferen-

tes conhecimentos? Como se pode distinguir o conhecimento cientí-

fico do não-científico? Como distinguir entre os vários conhecimentos

não-científicos? Como se distingue o conhecimento não-ocidental do

ocidental? Se existem vários conhecimentos ocidentais e vários

conhecimentos não-ocidentais, como distingui-los entre si? Qual a

configuração dos conhecimentos que agregam tanto componentes

ocidentais como não-ocidentais?

O segundo conjunto levanta questões referentes aos procedimen-

tos que permitem relacionar os diferentes saberes entre si.Como dis-

tinguir incomensurabilidade, contradição, incompatibilidade e com-

plementaridade? De onde provém a vontade de traduzir? Quem são os

tradutores? Como escolher os parceiros e tópicos de tradução? Como

formar decisões partilhadas e distingui-las das impostas? Como asse-

gurar que a tradução intercultural não se transforme numa versão

renovada do pensamento abissal, numa versão “suavizada” de impe-

rialismo e colonialismo? 

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O terceiro questionamento diz respeito à natureza e à avaliação das

intervenções no mundo real possibilitadas pelos saberes. Como se

pode traduzir tal perspectiva em práticas de conhecimento? Na busca

de alternativas à dominação e à opressão,como distinguir entre alter-

nativas ao sistema de opressão e dominação e alternativas dentro do

sistema? Mais especificamente, como distinguir alternativas ao capi-

talismo de alternativas dentro do capitalismo?

Em suma, como combater as linhas abissais usando instrumen-

tos conceituais e políticos que as não reproduzam? E por fim uma

questão com especial interesse para educadores:qual seria o impacto

de uma concepção de conhecimento pós-abissal (como uma ecologia

de saberes) sobre as instituições educativas? Nenhuma dessas per-

guntas tem respostas definitivas,mas a tentativa de dar-lhes respos-

tas — decerto um esforço coletivo e civilizacional — provavelmente é

a única forma de confrontar a nova e mais insidiosa versão do pensa-

mento abissal tal como identificada neste ensaio: a constante ascen-

são do paradigma da apropriação/violência no interior do paradigma

da regulação/emancipação.

É próprio da natureza da ecologia de saberes constituir-se

mediante perguntas constantes e respostas incompletas.Aí reside sua

característica de conhecimento prudente. A ecologia de saberes nos

capacita a uma visão mais abrangente tanto daquilo que conhecemos

como daquilo que desconhecemos, e também nos previne de que

aquilo que não sabemos é ignorância nossa e não ignorância em geral.

A vigilância epistemológica requerida pela ecologia de saberes trans-

forma o pensamento pós-abissal num profundo exercício de auto-refle-

xividade.Requer que os pensadores e atores pós-abissais se vejam num

contexto semelhante àquele em que Santo Agostinho se encontrava ao

escrever suas Confissões, o qual expressou eloqüentemente desta forma:

“Converti-me numa questão para mim”.A diferença é que o tópico dei-

xou de ser a confissão dos erros passados para ser a participação solidá-

ria na construção de um futuro pessoal e coletivo,sem nunca ter a certeza

de não repetir os erros cometidos no passado.

Boaventura de Sousa Santos

é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universi-

dade de Coimbra (Portugal) e da Universidade de Warwick (Inglaterra). É autor, entre outros livros,

de A gramática do tempo:para uma nova cultura política (Cortez,2006) e Para uma revolução democrática da

justiça (Cortez,2007).

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Boaventura de Sousa Santos



Recebido para publicação 

em 14 de agosto de 2007.

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