rialism
of modern constitutional
democracy”. In: Loughlin, Martin e
Walker,Neil (orgs.).Constituent power
and constitutional form. Oxford:
Oxford University Press,no prelo.
[10] A definição das linhas globais
ocorre gradualmente. Segundo Carl
Schmitt (The nomos of the Earth in the
international law of the jus publicum
europaeum. Nova York: Telos Press,
2003, p. 91), as linhas cartográficas
do século XV pressupunham ainda
uma ordem espiritual global vigente
de ambos os lados da divisão:a Respu-
blica Christiana, simbolizada pelo
papa. Isso explica as dificuldades
enfrentadas por Francisco Vitoria, o
grande teólogo e jurista espanhol do
século XVI, para justificar a ocupação
de terras nas Américas. Vitoria ques-
tiona se a descoberta é suficiente
como título jurídico de posse da terra.
A sua resposta é muito complexa,não
só por ser formulada em estilo aristo-
télico, mas sobretudo porque Vitória
não concebe qualquer resposta con-
vincente que não parta da premissa
da superioridade européia. Esse fato,
contudo, não confere qualquer di-
reito moral ou positivo sobre as ter-
ras ocupadas. Segundo Vitoria, nem
mesmo a superioridade civilizacional
dos europeus é suficiente como base
de um direito moral. Para ele, a con-
quista podia servir apenas de funda-
mento a um direito reversível à terra,
a jura contraria,nas suas palavras.Isto
é, a questão da relação entre a con-
quista e o direito à terra deve ser colo-
cada inversamente:se os índios tives-
sem descoberto e conquistado os
europeus, teriam eles igual direito a
ocupar as terras? A justificação de
Vitoria para a ocupação de terras
assenta ainda na ordem cristã medie-
val,na missão atribuída pelo papa aos
reis espanhol e português e no con-
ceito de guerra justa. Ver ibidem, pp.
101-25; Anghie, op. cit., pp. 13-31; Pag-
den,Anthony.Spanish imperialism and
the political imagination. New Haven:
Yale University Press,1990,p.15.
[11] Com as amity lines — a primeira
das quais poderá ter surgido do Tra-
tado de Cateau-Cambresis entre
Espanha e França (1559) —,as linhas
cartográficas abandonam a idéia de
uma ordem comum global e estabele-
cem uma dualidade abissal entre os
territórios deste lado da linha, onde
vigoram a verdade, a paz e a amizade,
e do outro lado da linha, onde impe-
ram a lei do mais forte, a violência e a
A primeira linha global moderna foi provavelmente a do Tratado
de Tordesilhas entre Portugal e Espanha (1494)
10
,mas as verdadeiras
linhas abissais emergem em meados do século
XVI com as amity lines
(“linhas de amizade”)
11
. Seu caráter abissal se manifesta no elabo-
rado trabalho cartográfico investido em sua definição, na extrema
precisão exigida a cartógrafos,fabricantes de globos terrestres e pilo-
tos, no policiamento vigilante e nas duras punições às violações. Na
sua constituição moderna, o colonial representa não o legal ou o ile-
gal, mas o sem lei. Uma máxima que então se populariza, “Não há
pecados ao sul do Equador”,ecoa na famosa passagem dos Pensamen-
tos de Pascal, escritos em meados do século XVII: “Três graus de lati-
tude subvertem toda a jurisprudência. Um meridiano determina a
verdade [...]. Singular justiça que um rio delimita! Verdade aquém
dos Pirineus, errado além”
12
. De meados do século XVI em diante, o
debate jurídico e político entre os Estados europeus acerca do Novo
Mundo concentra-se na linha global,isto é,na determinação do colo-
nial, e não na ordenação interna do colonial. O colonial é o estado de
natureza,onde as instituições da sociedade civil não têm lugar.Hob-
bes refere-se explicitamente aos “povos selvagens em muitos lugares
da América” como exemplares do estado de natureza, e Locke pensa
da mesma forma ao escrever em Sobre o governo civil: “No princípio
todo o mundo foi América”
13
.
O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as
concepções modernas de conhecimento e direito. As teorias do con-
trato social dos séculos XVII e XVIII são tão importantes por aquilo
que dizem como por aquilo que silenciam.O que dizem é que os indi-
víduos modernos,ou seja,os homens metropolitanos,entram no con-
trato social abandonando o estado de natureza para formar a socie-
dade civil
14
.O que silenciam é que com isso se cria uma vasta região do
mundo em estado de natureza — um estado de natureza a que são con-
denados milhões de seres humanos sem quaisquer possibilidades de
escapar por via da criação de uma sociedade civil. A modernidade oci-
dental,em vez de significar o abandono do estado de natureza e a pas-
sagem à sociedade civil, significa a coexistência de sociedade civil e
estado de natureza separados por uma linha abissal com base na qual
o olhar hegemônico, localizado na sociedade civil, deixa de ver e
declara efetivamente como não-existente o estado de natureza.O pre-
sente que vai sendo criado do outro lado da linha é tornado invisível ao
ser reconceitualizado como o passado irreversível deste lado da linha.
O contato hegemônico converte simultaneidade em não-contempo-
raneidade, inventando passados para dar lugar a um futuro único e
homogêneo. Assim, o fato de que os princípios legais vigentes na
sociedade civil deste lado da linha não se aplicam ao outro lado não
compromete sua universalidade.
74 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL
❙❙
Boaventura de Sousa Santos
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