Totem e tabu


III - ANIMISMO, MAGIA E A ONIPOTÊNCIA DE PENSAMENTOS



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III - ANIMISMO, MAGIA E A ONIPOTÊNCIA DE PENSAMENTOS

(1)
Os trabalhos que procuram aplicar as descobertas da psicanálise a temas do campo das ciências mentais ressentem-se do inevitável defeito de oferecer muito pouco aos leitores de ambas as classes. Esses trabalhos só podem ter a natureza de uma instigação: colocam perante o especialista certas sugestões, para que as leve em consideração em seu próprio trabalho. Esse defeito está fadado a ser extremamente evidente num ensino que tentará tratar do imenso domínio daquilo que é conhecido como ‘animismo‘.

O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no mais amplo, a doutrina de seres espirituais em real. O termo ‘animatismo’ também foi usado para indicar a teoria do caráter vivo daquelas coisas que nos parecem ser objetos inanimados [ver adiante em [1]] e as expressões ‘animalismo’ e ‘hominismo’ também são empregadas em relação a isto. A palavra ‘animismo’, originalmente utilizada para descrever um sistema filosófico específico, parece ter recebido de Tylor o seu atual significado.

O que conduziu à introdução desses termos foi uma compreensão da visão da natureza e do universo altamente notável adotada pelos povos primitivos de que temos conhecimento, seja na história passada, seja na época atual. Eles povoam o mundo com inumeráveis seres espirituais, benevolentes e malignos; e consideram esses espíritos e demônios como as causas dos fenômenos naturais acreditando que não apenas os animais e os vegetais, mas todos os objetos inanimados do mundo são animados por eles. Um terceiro, talvez o mais importante, item desta primitiva ‘filosofia da natureza’ causa-nos uma impressão menos estranha, uma vez que, embora tenhamos mantido apenas uma crença muito limitada na existência de espíritos e expliquemos os fenômenos naturais pela influência de forças físicas impessoais, nós próprios não estamos muito longe dessa terceira crença, pois os povos primitivos acreditam que os seres humanos são habitados por espíritos semelhantes. Essas almas que vivem nos homens podem deixar suas habitações e emigrar para outros seres humanos; são o veículo das atividades mentais e são até certo ponto independentes de seus corpos. Originalmente, as almas eram representadas como muito semelhantes às pessoas e foi somente no decorrer de um longo desenvolvimento que elas perderam suas características materiais e se tornaram ‘espiritualizadas’ em alto grau.

A maioria das autoridades inclina-se a pensar que estas idéias de alma constituem o núcleo original do sistema animista, que os espíritos são apenas almas que se tornaram independentes e que as almas de animais, vegetais e objetos foram construídas por analogia com almas humanas.

Como os homens primitivos chegaram às específicas visões dualistas sobre as quais o sistema animista se baseia? Supõe-se que assim o fizeram observando os fenômenos do sono (inclusive os sonhos) e da morte, que tanto se lhe assemelha, e tentando explicar esses estados, que têm interesse tão próximo para todo mundo. O principal ponto de partida desta teorização deve ter sido o problema da morte. O que o homem primitivo encarava como coisa natural era o prolongamento indefinido da vida — a imortalidade. Somente depois a idéia da morte foi aceita, e com hesitação. Mesmo para nós, ela é falha de conteúdo e não tem uma conotação clara. Têm havido discussões muito vivas mas inconclusivas sobre o papel que pode ter sido desempenhado na formação das doutrinas básicas do animismo por outros fatos observados ou experimentados, tais como as representações oníricas, as sombras, as imagens no espelho etc.

Foi encarado como perfeitamente natural e de modo algum estranho que o homem primitivo tivesse reagido aos fenômenos que despertavam suas especulações através da formação da idéia da alma, e depois, de sua extensão aos objetos do mundo exterior. Ao examinar o fato de as mesmas idéias animistas haverem surgido entre os povos mais variados e em todos os períodos, Wundt (1906, 154) declara que ‘elas constituem o produto psicológico necessário de uma consciência mitocriadora (…) e assim, neste sentido, o animismo primitivo deve ser encarado como a expressão espiritual do estado natural do homem, até onde é acessível à nossa observação’. A justificativa para a atribuição de vida aos objetos inanimados já fora enunciada por Hume em sua Natural History of Religion [Seção III]: ‘Existe uma tendência universal entre humanos para conceber todos os seres à sua semelhança e transferir a todos os objetos as qualidades que lhes são familiares e das quais se achem intimamente conscientes.

O animismo é um sistema de pensamento. Ele não fornece simplesmente uma explicação de um fenômeno específico, mas permite-me apreender todo o universo como uma unidade isolada de um ponto de vista único. A raça humana, se seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu, no decurso das eras, três desses sistemas de pensamento — três grandes representações do universo: animista (ou mitológica), religiosa e científica. Destas, o animismo, o primeiro a ser criado, é talvez o mais coerente e completo e o que dá uma explicação verdadeiramente total da natureza do universo. A primeira Weltanschauung humana é uma teoria psicológica. Iria mais além de nossos atuais objetivos demonstrar como grande parte dela persiste na vida moderna, seja sob a forma degradada da superstição, seja como a base viva de nossa fala, nossas crenças e nossas filosofias.

Com esses três estágios em mente, pode-se dizer que o animismo em si mesmo não é ainda uma religião, mas contém os fundamentos sobre os quais as religiões posteriormente foram criadas. É evidente também que os mitos se baseiam em premissas animistas, embora os pormenores da relação entre os mitos e o animismo pareçam estar inexplicados em alguns aspectos essenciais.
(2)
Nossa abordagem psicanalítica do tema, entretanto, é feita de outro ângulo. Não é de se supor que os homens foram inspirados a criar seu primeiro sistema do universo por pura curiosidade especulativa. A necessidade prática de controlar o mundo que os rodeava deve ter desempenhado seu papel. Assim, não ficamos surpresos em descobrir que, de mãos dadas com o sistema animista, existia um conjunto de instruções a respeito de como obter domínio sobre os homens, os animais e as coisas — ou melhor, sobre os seus espíritos. Estas instruções são conhecidas com o nome de ‘feitiçaria’ e ‘magia’. Reinach (1905-12, 2, XV) descreve-as como sendo a ‘estratégia do animismo’; eu prefiro, seguindo Hubert e Mauss (1904 [142 e segs.]), considerá-las a sua técnica.
Pode-se fazer distinção entre os conceitos de feitiçaria e magia? Talvez — se estivermos dispostos a mostrar um desprezo um tanto arbitrário pelas flutuações do uso lingüístico. A feitiçaria seria, então, a arte de influenciar espíritos tratando-os da mesma maneira como se tratariam seres humanos em circunstâncias semelhantes: apaziguando-os, corrigindo-os, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder, submetendo-os à nossa vontade — através dos mesmos métodos que se têm mostrado eficazes com homens vivos. A magia, por outro lado, é algo diferente: fundamentalmente, ela despreza os espíritos e faz uso de procedimentos especiais e não dos métodos psicológicos do dia-a-dia. É fácil imaginar que a magia é o ramo mais primitivo e mais importante da técnica animista, porque, entre outros, os métodos mágicos podem ser utilizados para tratar com os espíritos e a magia pode ser aplicada também a casos onde, segundo nos parece, o processo de espiritualização da natureza ainda não foi realizado.

A magia tem de servir aos mais variados propósitos — ela deve submeter os fenômenos naturais à vontade do homem, proteger o indivíduo de seus inimigos e de perigo, bem como conceder-lhe poderes para prejudicar os primeiros. Mas o princípio em cuja pressuposição a ação mágica se baseia — ou, mais propriamente, o princípio da magia — é tão notável que nenhuma das autoridades deixou de identificá-lo. Tylor [1891, 1, 116], se deixarmos de lado o juízo moral acessório, afirma que, em sua forma mais sucinta, esse princípio consiste em tomar equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Ilustrarei esta característica com dois grupos de atos mágicos.

Um dos procedimentos mágicos mais difundidos para prejudicar um inimigo é fazer uma efígie dele com qualquer material adequado. Que a efígie se lhe assemelhe tem pouca importância: qualquer objeto pode ‘ser transformado’ numa efígie sua. O que se fizer então à efígie acontecerá também ao original detestado; se alguma parte do corpo da primeira for danificada, a mesma parte do corpo do último ficará enferma. A mesma técnica mágica pode ser utilizada, não apenas com intuitos de inimizade pessoal, mas também com fins piedosos e para auxiliar os deuses contra os demônios malignos. Citarei Frazer (1911a, 1, 67). ‘Todas as noites, quando o deus-sol Ra mergulhava para sua casa no oeste fulgente, era atacado por hostes de demônios dirigidos por seu arquinimigo Apepi. Durante toda a noite ele os combatia e às vezes também de dia os poderes das trevas enviavam nuvens mesmo para o céu azul do Egito, a fim de obscurecer sua luz e enfraquecer-lhe o poder. Para ajudar o deus-sol nesta luta cotidiana, uma cerimônia era diariamente realizada em seu templo de Tebas. Uma figura de seu inimigo Apepi, representado como um crocodilo com uma face odienta ou uma serpente de muitas espirais, era feita de cera e sobre ela se escrevia o nome do demônio com tinta verde. Enrolada num envoltório de papiro, sobre o qual outra imagem de Apepi fora desenhada em tinta verde, a figura era então amarrada com fios negros de cabelos, cuspia-se-lhe em cima, era retalhada com uma faca de pedra e arremessada ao chão. Aí o sacerdote pisava-lhe em cima com o pé esquerdo repetidas vezes e depois queimava-a numa fogueira feita com uma certa planta ou erva. Quando o próprio Apepi tinha sido então efetivamente eliminado, efígies de cera de cada um de seus principais demônios e de seus pais, mães e filhos, eram feitas e queimadas da mesma maneira. O serviço, acompanhado da recitação de certos encantamentos prescritos, era repetido não apenas pela manhã, ao meio-dia e à noite, mas sempre que uma tempestade estrondeava, chuva forte caía ou nuvens negras se deslocavam furtivamente pelo céu, a fim de ocultar o disco brilhante do sol. Os demônios da trevas, das nuvens e das chuvas, sentiam os danos infligidos a suas imagens como se tivessem sido causados a eles próprios; sumiam, pelo menos durante algum tempo, e o benéfico deus-sol mais uma vez brilhava triunfante.

Do grande número de atos mágicos que possuem uma base semelhante, chamarei a atenção para mais dois, que desempenharam um grande papel entre os povos primitivos de todas a épocas e que persistem, em certo grau, nos mitos e cultos de fases mais elevadas de civilização — os rituais para produção de chuva e fertilidade. A chuva é magicamente produzida pela imitação dela ou das nuvens e tempestades que lhe dão origem, através de uma ‘brincadeira de chuva’, como quase se poderia dizer. No Japão, por exemplo, ‘uma turma de ainos espalha chuva por meio de peneiras, enquanto outros tomam uma tigela, enfeitam-na com velas e remos, como se fosse um barco, e depois a empurram ou puxam pela aldeia afora pelos jardins’. Da mesma maneira, a fertilidade da terra é magicamente promovida através de uma representação dramática da relação sexual humana. Assim, para tomar apenas um só de um número incontável de exemplos, ‘em algumas partes de Java, na estação em que o arroz logo começará a florescer, o lavrador e sua esposa visitarão seus campos à noite e lá efetuarão a relação sexual’, a fim de incentivar a fertilidade do arroz com o seu exemplo. Existe o temor, contudo, de que relações sexuais proibidas e incestuosas possam provocar o fracasso das colheitas e tornar a terra estéril.

Certas observâncias negativas, isto é, precauções mágicas, devem ser incluídas neste primeiro grupo. ‘Quando uma aldeia diak sai para caçar porcos selvagens na selva, as pessoas que ficam em casa não podem tocar em óleo nem em água com as mãos durante a ausência de seus amigos, porque, se os fizerem, os caçadores ficarão todos “com os dedos escorregadios” e a presa se lhes escapará das mãos.’ Ou ainda, ‘enquanto um caçador gilyak está perseguindo a caça na floresta, seus filhos que ficaram em casa são proibidos de fazer desenhos sobre madeira ou areia, porque temem que se os filhos assim procederem, os caminhos da floresta ficarão tão confusos quanto as linhas dos desenhos e assim o caçador poderia perder-se e nunca retornar’.

Nestes últimos exemplos, como em tantos outros do funcionamento da magia, o elemento da distância é desprezado; em outras palavras, a telepatia é admitida como certa. Não teremos dificuldade, por conseguinte, em compreender esta característica da magia.

Não pode haver dúvida quanto ao que deve ser encarado como fator operativo em todos esses exemplos. Trata-se da semelhança entre o ato executado e o resultado esperado. Por esta razão, Frazer descreve esse tipo de magia como ‘imitativo’ ou ‘homeopático’. Se desejo que chova, tenho apenas de efetuar algo que se assemelhe à chuva ou faça lembrá-la. Numa fase posterior da civilização, em vez dessa chuva mágica, serão feitas procissões até um templo e preces pedindo chuva serão dirigidas à divindade que nele habita. Finalmente, esta técnica religiosa será por sua vez abandonada e serão feitas tentativas de produzir na atmosfera efeitos que conduzam à chuva.

Num segundo grupo de atos mágicos, o princípio da semelhança não desempenha qualquer papel e seu lugar é assumido por outro princípio, cuja natureza imediatamente se tornará clara pelos exemplos seguintes.

Existe um outro processo pelo qual um inimigo pode ser prejudicado. Entra-se de posse de um pouco de seus cabelos ou unhas ou outros produtos de excreção ou mesmo de um pedaço de suas roupas, e se os trata de maneira hostil. Então, é exatamente como se se tivesse apossado do próprio homem; e este experimenta o que quer que tenha sido feito aos objetos que dele se originaram. Segundo a visão do homem primitivo, uma das partes mais importantes de uma pessoa é o seu nome. Assim; se se souber o nome de um homem ou de um espírito, obtém-se uma certa quantidade de poder sobre o seu possuidor. Está é a origem das extraordinárias precauções e restrições sobre o uso de nomes, às quais já nos referimos no ensaio sobre o tabu. (Ver em [1] e segs.) Nesses exemplos, o lugar da semelhança é evidentemente tomado pela afinidade.

Os motivos mais elevados para o canibalismo entre os povos primitivos têm uma origem semelhante. Incorporando partes do corpo de uma pessoa pelo ato de comer, adquire-se ao mesmo tempo as qualidades por ela possuídas. Isto, em certas circunstâncias, conduz a precauções e restrições relacionadas com a dieta. Uma mulher com filho pequeno evitará comer a carne de certos animais, por temor de que algumas qualidades indesejáveis que possam ter (a covardia, por exemplo) sejam transmitidas ao filho que está sendo nutrido por ela. O poder mágico não é afetado mesmo que a conexão entre os dois objetos já tenha sido rompida ou mesmo que o contato tenha ocorrido apenas numa única ocasião de importância. Por exemplo, a crença de que existe uma ligação mágica entre um ferimento e a arma que a causou pode ser percebida, inalterada, através de milhares de anos. Se um melanésio puder entrar de posse do arco que provocou seu ferimento, guarda-lo-á cuidadosamente num lugar frio, a fim de diminuir a inflamação da ferida. Mas se o arco for deixado na posse do inimigo, ele será sem dúvida dependurado perto do fogo, de maneira a que a ferida se torne febril e inflamada. Plínio (em sua História Natural, Livro XXVIII [Capítulo 7]) conta-nos que ‘se ferirmos um homem e ficarmos sentidos por isso, teremos apenas de cuspir na mão que causou o ferimento e a dor do sofredor será instantaneamente mitigada’. [Frazer, 1911a, 1, 201.] Francis Bacon (em seu Sylva Silvarum [X, § 998]) menciona que ‘é constantemente ouvido e afirmado que o untamento da arma que causou o ferimento curará a própria ferida’. Diz-se que a gente inglesa do campo ainda hoje segue esta prescrição e se se cortam com uma foice mantêm o instrumento cuidadosamente limpo, a fim de impedir que a ferida inflame. ‘Em Norwich, em junho de 1902, uma mulher chamada Matilda Henry cravou acidentalmente um prego no pé. Sem examinar a ferida ou mesmo retirar a meia, fez com que sua filha untasse o prego, dizendo que se isso fosse feito, nenhum dano sobreviria da machucadura. Poucos dias após, morria de trismo’ — (uma forma de tétano, N. do T. Bras.) — em conseqüência dessa antissepsia deslocada. (Frazer, ibid., 203).

O último grupo de casos exemplifica o que Frazer distingue na magia ‘imitativa’ com o nome de magia ‘contagiosa’. O que se acredita ser o princípio eficaz não é mais a semelhança, mas a conexão espacial, a contigüidade ou, pelo menos, a contigüidade imaginada — a lembrança dela. Desde que, contudo, a semelhança e a contigüidade são os dois princípios essenciais dos processos de associação, parece que a verdadeira explicação de toda a insensatez dessas observâncias mágicas é a dominância da associação de idéias. A propriedade da descrição de magia feita por Tylor, a qual já citei (ver em [1]), torna-se agora evidente: tomar equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Frazer (1911a, 1, 420) expressou-se quase com as mesmas palavras: ‘Os homens tomaram equivocadamente a ordem de suas idéias pela ordem da natureza e daí imaginaram que o controle que têm ou parecem ter sobre seus pensamentos permite-lhes exercer um controle correspondente sobre as coisas.’

A princípio ficaremos surpresos em descobrir que esta esclarecedora explicação da magia foi rejeitada por alguns escritores como insatisfatória (p. ex., Thomas, 1910-11a). Pensando bem, contudo, ver-se-á que a crítica é justificada. A teoria associativa da magia explica simplesmente os caminhos pelos quais a magia avança; não explica sua verdadeira essência, a saber, o equívoco que a leva a substituir as leis da natureza por leis psicológicas. Algum fator dinâmico está faltando, evidentemente. Mas, considerando que os críticos da teoria de Frazer se desviaram na procura desse fator, será fácil chegar a uma explicação satisfatória da magia simplesmente aprofundando e levando mais adiante a teoria associativa.

Consideremos primeiramente o caso mais simples e mais importante da magia imitativa. De acordo com Frazer (1911a, 1, 54), ela pode ser praticada por si própria, enquanto que a magia contagiosa via de regra pressupõe outrem. É fácil perceber os motivos que conduziram os homens a praticar a magia: são os desejos humanos. Tudo o que precisamos admitir é que o homem primitivo tinha uma crença imensa no poder de seus desejos. A razão básica por que o que ele começa a fazer por meios mágicos vem a acontecer é, em última análise, simplesmente que o deseja. De início, portanto, a ênfase é colocada apenas no seu desejo.

As crianças se encontram numa situação psíquica análoga, embora sua eficiência motora não esteja ainda desenvolvida. Já expus em outra oportunidade (1911b) a hipótese de que, primeiramente, elas satisfazem seus desejos de uma maneira alucinatória, isto é, criam uma situação satisfatória por meio de excitações centrífugas dos órgãos sensoriais. Um homem adulto primitivo tem à sua disposição um método alternativo. Seus desejos são acompanhados de um impulso motor, a vontade, que está destinado, mais tarde, a alterar toda a face da terra para satisfazer seus desejos. Esse impulso motor é a princípio empregado para dar uma representação da situação satisfatória, de maneira tal que se torna possível experimentar a satisfação por meio do que poderia ser descrito como alucinações motoras. Esse tipo de representação de um desejo satisfeito é bastante comparável à brincadeira das crianças, que dá prosseguimento à técnica primitiva e puramente sensorial de satisfação. Se as crianças e os homens primitivos acham o brinquedo e a representação imitativa suficiente para eles, isto não constitui um sinal de que sejam despretensiosos, em nosso sentido, ou de que aceitem resignadamente sua impotência real. É o resultado, facilmente compreensível, da virtude suprema que atribuem aos seus desejos, da vontade que está associada a esses desejos e dos métodos pelos quais os desejos operam. À medida que o tempo passa, o acento psicológico se desloca dos motivos do ato mágico para as medidas através das quais ele é executado — isto é, para o próprio ato. (Seria talvez mais correto dizer que são apenas estas medidas que revelam ao sujeito a valorização excessiva que ele atribui aos seus atos físicos.) Chega a parecer, assim, como se fosse o próprio ato mágico sozinho que, devido à sua semelhança com o resultado desejado, determina a ocorrência desse resultado. Não há oportunidade, na fase do pensamento animista, de apresentar qualquer prova objetiva do verdadeiro estado de coisas. Mas uma possibilidade de fazer isso aparece realmente numa época posterior, quando, apesar de todos esses procedimentos ainda estarem sendo realizados, o fenômeno psíquico da dúvida começou a surgir, como expressão de uma tendência à repressão. Nesse ponto, os homens estarão prontos para admitir que conjurar espíritos não dá resultado, a menos que a conjuração seja acompanhada de fé, e que o poder mágico da prece falha se não houver, por trás dele, piedade em ação.

O fato de ter sido possível construir um sistema de magia contagiosa sobre associações de contigüidade mostra que a importância atribuída aos desejos e à vontade foi estendida desses dois fatores a todos os atos psíquicos que estão sujeitos à vontade. Uma supervalorização geral ocorreu assim com todos os processos mentais — isto é, uma atitude para com o mundo que, em vista de nosso conhecimento da relação entre a realidade e o pensamento, não pode deixar de impressionar-nos como uma supervalorização do pensamento. As coisas se tornam menos importantes do que as idéias das coisas: tudo o que for feito às idéias das coisas inevitavelmente acontecerá também com as coisas. As relações mantidas entre as idéias de coisas manter-se-ão também igualmente entre as próprias coisas. Desde que a distância näo tem importância para o pensamento — desde que o que fica mais afastado tanto no tempo quanto no espaço pode sem dificuldade ser abrangido num único ato de consciência — assim também o mundo da magia tem um desprezo telepático pela distância espacial e trata as situações passadas como se fossem atuais. Na época animista, o reflexo do mundo interno está fadado a obscurecer a outra representação do mundo, aquela que nós parecemos perceber.

É de se notar ainda que os dois princípios de associação — semelhança e contigüidade — estão incluídos no conceito mais amplo de ‘contato’. A associação por contigüidade é contato no sentido literal; a associação por semelhança o é no sentido metafórico. O emprego da mesma palavra para os dois tipos de relação é, sem dúvida, explicado por alguma identidade nos processos psíquicos em causa, identidade que ainda não foi por nós apreendida. Temos aqui o mesmo alcance de significado da idéia de ‘contato’ que encontramos em nossa análise do tabu. (Cf. ver em [1])

Para resumir, pode-se dizer, então, que o princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista de pensamento, é o princípio da ‘onipotência de pensamentos’.
(3)
Adotei a expressão ‘onipotência de pensamentos’ de um homem altamente inteligente que sofria de idéias obsessivas e que depois de curado pelo tratamento psicanalítico, pôde dar provas de sua eficiência e bom senso. (Cf. Freud, 1909d). Ele criou a expressão como explicação para todos os estranhos e misteriosos acontecimentos pelos quais, como outras vítimas da mesma doença, parecia ser perseguido. Se pensava em alguém, tinha certeza de encontrar essa pessoa logo depois, como se fosse por mágica. Se de repente perguntava pela saúde de um conhecido a quem há muito tempo não via, escutava que este tinha acabado de morrer, de maneira a parecer que uma linguagem telepática lhe houvesse chegado dele. Se, sem nenhuma intenção realmente séria, praguejava contra um estranho, podia estar certo de que este morreria pouco depois, de modo que se sentiria responsável pela sua morte. No decurso do tratamento, ele próprio pôde contar-me como a aparência enganadora surgia na maioria dos casos, e por meio de que artifícios ele mesmo ajudara a fortalecer suas próprias crenças supersticiosas. Todos os neuróticos obsessivos são assim supersticiosos, geralmente contra o seu melhor juízo.

É nas neuroses obsessivas que a sobrevivência da onipotência dos pensamentos é mais claramente visível e que as conseqüências desse modo primitivo de pensar mais se aproximam da consciência. Mas não devemos nos iludir supondo que se trata de uma característica distintiva dessa neurose específica, porque a investigação analítica revela a mesma coisa também nas outras neuroses. Em todas elas, o que determina a formação dos sintomas é a realidade, não da experiência, mas do pensamento. Os neuróticos vivem um mundo à parte, onde, como já disse antes [1911b, perto do final do artigo], somente a ‘moeda neurótica’ é moeda corrente, isto é, eles são afetados apenas pelo que é pensado com intensidade e imaginado com emoção, ao passo que a concordância com a realidade externa não tem importância. O que os histéricos repetem em suas crises e fixam através dos sintomas são experiências que ocorreram daquela forma apenas em sua imaginação — embora seja verdade que, em última instância, essas experiências imaginadas remontem a acontecimentos reais ou sejam neles baseadas. Atribuir a sensação neurótica de culpa a malfeitos reais demonstraria um mal-entendido equivalente. Um neurótico obsessivo pode ser oprimido por uma sensação de culpa que seria adequada para um grande assassino, embora, na realidade, de sua infância em diante, tenha-se comportado para com os seus concidadãos como o mais escrupuloso e respeitável membro da sociedade. Não obstante, sua sensação de culpa tem uma justificativa: está fundada nos intensos e freqüentes desejos de morte contra os seus semelhantes que estão inconscientemente em ação dentro dele. Tem uma justificativa se levarmos em consideração os pensamentos inconscientes e não os atos intencionais. Assim, vê-se que a onipotência de pensamentos, a supervalorização dos processos mentais em comparação com a realidade, desempenha um papel irrestrito na vida emocional dos pacientes neuróticos e em tudo que dela se deriva. Se um deles submeter-se ao tratamento psicanalítico, que torna consciente o que nele era inconsciente, será incapaz de acreditar que os pensamentos são livres e constantemente terá medo de expressar desejos malignos, como se sua expressão conduzisse inevitavelmente à sua realização. Essa conduta, bem como as superstições que pratica na vida comum, revela a semelhança dele com os selvagens que acreditam poderem alterar o mundo externo pelo simples pensamento.

Os atos obsessivos primários desses neuróticos são de um caráter inteiramente mágico. Se não são encantamentos, são, no mínimo, contra-encantamentos, destinados a manter afastadas as expectativas de desgraça com que a neurose geralmente começa. Sempre que consegui penetrar o mistério, descobri que a desgraça esperada era a morte. Schopenhauer disse que o problema da morte se encontra no começo de toda filosofia e já vimos [ver em [1]] que a origem da crença em almas e demônios, que constitui a essência do animismo, remonta à impressão que é causada nos homens pela morte. É difícil ajuizar se os atos obsessivos ou protetores executados pelos neuróticos seguem a lei da similaridade (ou, segundo seja o caso, do contraste); porque, via de regra, devido às condições predominantes da neurose, foram deformados pelo seu deslocamento para algo muito insignificante, alguma ação que, em si própria, é da maior trivialidade. Também as fórmulas protetoras das neuroses obsessivas encontram sua contrapartida nas fórmulas da magia. É possível, contudo, descrever o curso de desenvolvimento dos atos obsessivos: podemos mostrar como eles começam por serem tão afastados quanto possível de qualquer coisa sexual — defesas mágicas contra desejos malignos — e como terminam por serem substitutos do ato sexual proibido e das imitações mais próximas possíveis dele.

Se estivermos dispostos a aceitar a explicação acima oferecida da evolução da maneira do homem visualizar o universo — uma fase animista seguida de uma fase religiosa e esta, por sua vez, de uma fase científica — não será difícil acompanhar as vicissitudes da ‘onipotência de pensamentos’ através dessas diferentes fases. Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses através de uma variedade de maneiras, de acordo com os seus desejos. A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência humana; os homens reconheceram a sua pequenez e submeteram-se resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade.

Se acompanharmos retrospectivamente o desenvolvimento das tendências libidinais, tal como as encontramos no indivíduo, desde suas formas adultas até o seus começos na infância, surge uma importante distinção, que descrevi em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1950d). Manifestações dos instintos sexuais podem ser observadas desde os começos, mas, de saída, elas ainda não são dirigidas para qualquer objeto externo. Os componentes instintivos separados da sexualidade atuam independentemente uns dos outros, a fim de obter prazer e encontrar satisfação no próprio corpo do sujeito. Essa fase é conhecida como a do auto-erotismo, sendo sucedida por outra, na qual um objeto é escolhido.

Estudos ulteriores demonstraram que é conveniente e verdadeiramente indispensável inserir uma terceira fase entre aquelas duas, ou, em outras palavras, dividir a primeira fase, a do auto-erotismo, em duas. Nessa fase intermediária, cuja importância a pesquisa tem evidenciado cada vez mais, os instintos sexuais até então isolados já se reuniram num todo único e encontraram também um objeto. Este objeto, porém, não é um objeto externo, estranho ao sujeito, mas se trata de seu próprio ego, que se constituiu aproximadamente nessa mesma época. Tendo em mente as fixações patológicas dessa nova fase, que se tornam observáveis mais tarde, demos-lhe o nome de ‘narcisismo’. O sujeito comporta-se como se estivesse amoroso de si próprio; seus instintos egoístas e seus desejos libidinais ainda não são separáveis pela nossa análise.

Embora ainda não estejamos em posição de descrever com exatidão suficiente as características dessa fase narcisista, na qual os instintos sexuais até então dissociados se reúnem numa unidade isolada e catexizam o ego como objeto, já temos motivos para suspeitar que essa organização narcisista nunca é totalmente abandonada. Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para a sua libido. As catexias de objetos que efetua são, por assim dizer, emanações da libido que ainda permanece no ego e pode ser novamente arrastada para ele. A condição de apaixonado, que é psicologicamente tão notável e é o protótipo normal das psicoses, mostra essas emanações em seu máximo, comparadas com o nível do amor a si mesmo.

Os homens primitivos e os neuróticos, como já vimos, atribuem uma alta valorização — a nossos olhos, uma supervalorização — aos atos psíquicos. Essa atitude pode perfeitamente ser relacionada com o narcisismo e encarada como um componente essencial deste. Pode-se dizer que, no homem primitivo, o processo de pensar ainda é, em grande parte, sexualizado. Esta é a origem de sua fé na onipotência dos pensamentos, de sua inabalável confiança na possibilidade de controlar o mundo e de sua inacessibilidade às experiências, tão facilmente obteníveis, que poderiam ensinar-lhe a verdadeira posição do homem no universo. Com relação aos neuróticos, encontramos que, por um lado, uma parte considerável desta atitude primitiva sobreviveu em sua constituição e, por outro, que a repressão sexual que neles ocorreu ocasionou uma maior sexualização de seus processos de pensamento. Os resultados psicológicos devem ser os mesmos em ambos os casos, quer a hipercatexia libidinal do pensamento seja original, quer tenha sido produzida pela regressão: narcisismo intelectual e onipotência de pensamentos.

Se podemos considerar a existência da onipotência de pensamentos entre os povos primitivos como uma prova em favor do narcisismo, somos incentivados a fazer uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista corresponderia à narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa corresponderia à fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; enquanto que a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos.

Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais — graças à ilusão artística — como se fosse algo real. As pessoas falam com justiça da ‘magia da arte’ e comparam os artistas aos mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de muitos intuitos mágicos.


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Assim, a primeira imagem que o homem formou do mundo — o animismo — foi psicológica. Não precisou então de base científica, uma vez que a ciência só começa depois de ter-se dado contra de que o mundo é desconhecido e que, por conseguinte, tem-se de procurar meios para conseguir conhecê-lo. O animismo surgiu no homem primitivo naturalmente e como coisa normal. Ele sabia que as coisas eram semelhantes no mundo, ou seja, exatamente como ele próprio se sentia ser. Estamos então preparados para descobrir que o homem primitivo transpunha as condições estruturais de sua própria mente para o mundo externo; e podemos tentar inverter o processo e colocar de volta na mente humana aquilo que o animismo acredita ser a natureza das coisas.

A técnica do animismo, da magia, revela, da maneira mais clara e inequívoca, uma intenção de impor as leis que regem a vida mental às coisas reais; nisto, os espíritos não precisam ainda desempenhar nenhum papel, embora possam ser tomados como objetos de tratamento mágico. Assim, as suposições da magia são mais fundamentais e mais antigas que a doutrina dos espíritos, que constitui o centro do animismo. Nosso ponto de vista psicanalítico coincide aqui com uma teoria apresentada por R. R. Marett (1900), a qual postula uma fase pré-animista antes do animismo, fase cujo caráter é mais bem indicado pelo termo ‘animatismo’, a doutrina da universalidade da vida. A experiência tem pouca luz a lançar sobre o pré-animismo, uma vez que ainda não se descobriu nenhuma raça que não possua o conceito de espíritos. (Cf. Wundt, 1906, 171 e segs.)

Enquanto a magia ainda reserva a onipotência apenas para os pensamentos, o animismo transmite um pouco dela para os espíritos, preparando assim o caminho para a criação de uma religião. O que, podemos perguntar, pode ter induzido o homem primitivo a efetuar esse primeiro ato de renúncia? Dificilmente pode ter sido o reconhecimento da falsidade de suas premissas, porque continuou a praticar a técnica mágica.

Os espíritos e os demônios, como demonstrei no último ensaio, são apenas projeções dos próprios impulsos emocionais do homem. Ele transforma as suas catexias emocionais em pessoas, povoa o mundo com elas e enfrenta os seus processos mentais internos novamente fora de si próprio — exatamente da mesma maneira como aquele inteligente paranóico, Schreber, descobriu um reflexo das ligações e dos desligamentos de sua libido nas vicissitudes de seus confabulados ‘raios de Deus’.

Proponho evitar (como já fiz anteriormente) entrar no problema geral da origem da tendência a projetar os processos mentais para o exterior. No entanto, pode-se supor com segurança que essa tendência se intensifica quando a projeção promete trazer consigo a vantagem. Tal vantagem pode ser esperada com certeza quando surge conflito entre diferentes impulsos, todos eles lutando no sentido da onipotência — porque, evidentemente, eles não podem tornar-se todos onipotentes. Na realidade, o processo patológico na paranóia faz uso do mecanismo de projeção a fim de lidar com conflitos mentais dessa espécie. Caso típico de um conflito assim é que o que se dá entre dois membros de um par de opostos — o caso de uma atitude ambivalente, que examinamos em pormenores, no caso da pessoa que chora a morte de um parente amado. [Cf. ver em [1] e segs.] Esse tipo de caso parece ser particularmente passível de fornecer um motivo para a criação de projeções. Aqui, mais uma vez, estamos de acordo com os autores que sustentam que os primeiros espíritos a nascer foram os espíritos maus. Esses autores acham que a idéia de alma derivou-se da impressão causada pela morte sobre os sobreviventes. A única diferença é que nós não damos ênfase ao problema intelectual que a morte traz ao confronto dos vivos; a nosso ver, a força que dá ímpeto à pesquisa deve ser atribuída de preferência ao conflito emocional em que os sobreviventes se acham mergulhados.

Assim sendo, a primeira realização teórica do homem — a criação dos espíritos — parece ter surgido da mesma fonte que as primeiras restrições morais a que se achava sujeito — as observâncias do tabu. O fato de possuírem a mesma origem não precisa implicar, contudo, que tenham surgido simultaneamente. Se a posição dos sobreviventes em relação aos mortos foi realmente o que primeiro levou o homem primitivo a refletir e compeliu-o a abrir mão de um pouco de sua onipotência em favor dos espíritos e a sacrificar um pouco de sua liberdade de ação, então esses produtos culturais constituiriam um primeiro reconhecimento da A [Necessidade], que se opõe ao narcisimo humano. O homem primitivo estaria assim submetendo-se à supremacia da morte pelo mesmo gesto com que pareceria estar negando-a.

Se nos aventurarmos a levar nossa hipótese ainda mais longe, poderemos perguntar que parte essencial de nossa estrutura psicológica se reflete e reproduz na criação projetiva das almas e dos espíritos. Dificilmente se poderia negar que a concepção primitiva de uma alma, por muito que pudesse diferir da alma posterior, puramente imaterial, seria, não obstante, intrinsecamente a mesma; ou seja, presumiria que tanto as pessoas quanto as coisas são de uma natureza dúplice e que seus atributos e modificações conhecidos acham-se distribuídos entre as duas partes componentes. Essa ‘dualidade’ original, para usar uma expressão de Herbert Spencer (1893) é idêntica ao dualismo revelado pela distinção comum que fazemos entre corpo e alma e às expressões lingüísticas nela enraizadas, sejam como o emprego de frases como ‘fora de si’ ou ‘voltando a si’ em relação a crises de raiva ou a desmaios. [ibid., p. 124.]

Quando nós, não menos que o homem primitivo, projetamos algo para a realidade externa, o que acontece certamente deve ser o seguinte: estamos reconhecendo a existência de dois estados — um em que algo é diretamente fornecido aos sentidos e à consciência (ou seja, está presente neles) e, ao lado deste, outro, em que a mesma coisa é latente mas capaz de reaparecer. Em resumo, estamos reconhecendo a coexistência da percepção e da memória, ou, em termos mais gerais, a existência de processos mentais inconscientes ao lado dos conscientes. Poder-se-ia dizer que, em última análise, o ‘espírito’ das pessoas ou das coisas reduz-se à sua capacidade de serem lembradas e imaginadas após a percepção delas haver cessado.

Naturalmente, não é de se esperar que tanto o conceito primitivo de ‘alma’ quanto o atual se separem do da outra parte da personalidade pela mesma linha de demarcação que a nossa moderna ciência traça entre a atividade mental consciente e inconsciente. A alma animista reúne propriedades de ambos os lados. Sua qualidade móvel e volátil, seu poder de abandonar o corpo e tomar posse, temporária ou permanentemente, de outro corpo — são características que nos fazem lembrar de maneira inequívoca a natureza da consciência. Mas a maneira como ela permanece oculta por trás da personalidade manifesta faz lembrar o inconsciente; a imutabilidade e a indestrutibilidade são qualidades que já não atribuímos aos processos conscientes, e sim aos inconscientes, e encaramos estes como o verdadeiro veículo da atividade mental.

Já disse [ver em [1] e seg.] que o animismo é um sistema de pensamento, a primeira teoria completa do universo e passarei agora a tirar certas conclusões a partir da visão psicanalítica desse tipo sistema. A cada dia de nossa vida, a experiência pode nos mostrar as características principais de um ‘sistema’. Temos sonhos durante a noite e aprendemos a maneira de interpretá-los durante o dia. Os sonhos podem, sem contradizer sua natureza, parecer confusos e desconexos. Mas podem também, pelo contrário, simular as impressões ordenadas de uma experiência real, podem fazer um fato decorrer de outro e uma parte de seu conteúdo referir-se a outra. Esse resultado pode ser conseguido com mais ou menos êxito, mas dificilmente será tão completamente bem sucedido a ponto de não deixar visível nenhum absurdo, nenhuma falha em sua contextura. Quando submetemos um sonho à interpretação, descobrimos que a disposição errática e irregular de suas partes constituintes não tem importância alguma do ponto de vista de nossa compreensão dele. Os elementos essenciais num sonho são os pensamentos oníricos e estes têm significado, conexão e ordem. Mas sua ordem é inteiramente diferente da que é lembrada por nós como presente no sonho manifesto. Neste, a conexão entre os pensamentos do sonho foi abandonada e pode ou permanecer completamente perdida ou ser substituída pela nova conexão apresentada no conteúdo manifesto. Os elementos do sonho, à parte de serem condensados, são quase sempre arranjados numa nova ordem, mais ou menos independente de sua disposição primitiva. Finalmente, deve-se acrescentar que tudo aquilo em que o material original dos pensamentos oníricos foi transformado pela elaboração onírica é então submetido a uma outra influência, que é conhecida como ‘revisão secundária’, e sua finalidade é evidentemente livrar-se da desconexão e ininteligibilidade produzidas pela elaboração onírica e substituí-las por um novo ‘significado’. Mas esse novo significado, a que se chega pela revisão secundária, não é mais o significado dos pensamentos oníricos.

A revisão secundária do produto da elaboração onírica constitui um exemplo admirável da natureza e das pretensões de um sistema. Existe em nós uma função intelectual que exige unidade, conexão e inteligibilidade de qualquer material, seja da percepção ou do pensamento, que cai sob o seu domínio e se, em conseqüência de circunstâncias especiais, não pode estabelecer uma conexão verdadeira, não hesita em fabricar uma falsa. Os sistemas construídos desta maneira chegam ao nosso conhecimento não apenas através dos sonhos, mas também das fobias, do pensamento obsessivo e dos delírios. A construção de sistemas é percebida de modo mais notável nas perturbações delirantes (na paranóia), onde domina o quadro sintomático; mas sua ocorrência em outras formas de neuropsicoses não deve ser subestimada. Em todos esse casos pode-se demonstrar que uma nova arrumação do material psíquico foi feita com um novo objetivo em vista, e muitas vezes essa redisposição tem de ser radical, se é que se quer que o resultado pareça inteligível do ponto de vista do sistema. Assim, um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real.

Isto pode ser ilustrado por um exemplo tirado de uma neurose. Em meu ensaio sobre o tabu mencionei uma paciente minha cujas proibições obsessivas mostravam a mais perfeita concordância com um tabu maori (ver em [1]). A neurose dessa mulher visava ao marido e culminou com a defesa contra um desejo inconsciente de que ele morresse. Sua fobia manifesta e sistemática, contudo, relacionava-se com a menção da morte em geral, enquanto o marido era inteiramente excluído dela e nunca constituía objeto de sua preocupação consciente. Certo dia, ouviu o marido dando instruções para que suas navalhas, que haviam perdido o fio, fossem levadas a uma certa loja para serem reamoladas. Impulsionada por um estranho mal-estar, ela própria pôs-se a caminho da loja. Depois de inspecionar o local, voltou e insistiu para que o marido se livrasse definitivamente das navalhas, uma vez que tinha descoberto que na porta pegada à da loja que ele havia indicado existia uma casa funerária: por causa do plano que ele havia feito, disse ela, as navalhas tinham-se tornado inextricavelmente envolvidas com pensamentos de morte. Era esta, então, a razão sistemática para a sua proibição. Podemos estar plenamente certos de que, mesmo sem a descoberta da loja ao lado, a paciente teria voltado para casa com uma proibição contra as navalhas. Bastaria ter encontrado um cortejo fúnebre no seu caminho até a loja, ou alguém vestido de luto ou conduzindo uma coroa funerária. A rede de determinantes possíveis para a proibição espalhara-se de modo suficientemente amplo para apanhar a caça de qualquer jeito; unir ou deixar de unir essa rede, dependia simplesmente da decisão dela. Poderia ser demonstrado que, em outras ocasiões, ela não colocaria os determinantes em funcionamento e explicaria isso dizendo que tinha passado ‘um dia melhor’. A causa real de sua proibição quanto às navalhas era, naturalmente, como é fácil de descobrir, sua aversão a ligar qualquer sentimento agradável à idéia de que o marido pudesse cortar o pescoço com as navalhas acabadas de afiar.

Exatamente da mesma maneira, uma inibição do movimento (uma abasia ou uma agorafobia) gradualmente tornar-se-á mais completa e mais particularizada, quando esse sistema conseguir instalar-se como representante de um desejo inconsciente e da defesa contra o desejo. Quaisquer outras fantasias inconscientes e reminiscências operativas que possam estar presentes no paciente forçam caminho à expressão como sintomas ao longo dessa mesma trilha, uma vez tenha sido aberta, e agrupam-se numa nova disposição apropriada dentro da estrutura da inibição quanto ao movimento. Desse modo, seria tarefa vã, e na verdade tola, tentar compreender as complexidades e pormenores dos sintomas de (por exemplo) uma agorafobia, com base em suas premissas subjacentes; pois toda a harmonia e precisão da combinação são apenas aparentes. Tal como acontece com as fachadas dos sonhos, se procurarmos mais atentamente, encontraremos a mais gritante incoerência e arbitrariedade na estrutura dos sintomas. A razão real para os pormenores de uma fobia sistemática desse tipo reside em determinantes ocultos, que não precisam ter nada a ver com uma inibição de movimentos; e é por isso, também, que tais fobias assumem formas tão variadas e contraditórias nas diferentes pessoas.

Retornemos agora ao sistema animista de que estamos tratando. A percepção interna (insight) que adquirimos de outros sistemas psicológicos permite-nos concluir que também no homem primitivo a ‘superstição’ não é necessariamente a razão única ou real para um costume ou observância em particular e não nos dispensa do dever de procurar os motivos ocultos deles. Sob o domínio de um sistema animista, é inevitável que toda observância e toda atividade possuam uma base sistemática, que atualmente descrevemos como ‘supersticiosa’. A ‘superstição’ — como a ‘ansiedade’, os ‘sonhos’ e os ‘demônios’ — é um daqueles conceitos psicológicos provisórios que teriam sob o impacto da pesquisa psicanalítica. Uma vez tenhamos penetrado além dessas construções, que se assemelham a biombos erguidos como defesas contra a compreensão correta, começamos a nos dar conta de que a vida mental e o nível cultural dos selvagens não obtiveram até agora todo o reconhecimento que merecem.

Se tomarmos a repressão dos instintos como medida do nível de civilização que foi alcançado, teremos de admitir que mesmo sob o sistema animista efetuaram-se progressos e desenvolvimentos que são injustamente desprezados por conta de sua base supersticiosa. Quando sabemos que os guerreiros de uma tribo selvagem praticam a maior continência e limpeza quando estão a caminho da guerra, a explicação apresentada é que o motivo é ‘o medo de que o inimigo possa conseguir os desejos de sua pessoa e fique assim capacitado a efetuar sua destruição através da magia’ (Frazer, 1911b, 157); e uma razão supersticiosa análoga poderia ser sugerida para a continência. Não obstante, permanece o fato de que realizaram uma renúncia aos instintos e poderemos compreender melhor a posição deles se supusermos que o guerreiro selvagem submete-se a essas restrições como uma contramedida, porque se acha a ponto de entregar-se completamente à satisfação de impulsos cruéis e hostis que via de regra lhe são proibidos. O mesmo acontece com os numerosos casos de restrições sexuais que são impostas a alguém que esteja empenhado num trabalho difícil ou de responsabilidade. [Ibid., p. 169 e segs.] Embora os fundamentos alegados para essas proibições possam pertencer a um contexto mágico, a idéia fundamental de obter maior vigor pela renúncia a algumas satisfações instintivas permanece, entretanto, inequívoca; e a raiz higiênica da proibição que acompanha sua racionalização mágica não deve ser subestimada. Quando os homens de uma tribo selvagem saem em expedição para caçar, pescar, combater ou colher plantas raras, suas esposas ficam em casa sujeitas a muitas restrições opressivas às quais os próprios selvagens atribuem uma influência favorável, a operar à distância, sobre o sucesso da expedição. Mas não é preciso muito pouca penetração para perceber que esse fator que opera à distância nada mais é que os pensamentos saudosos dos homens ausentes do lar e que por trás desses disfarces se encontra um saudável discernimento psicológico de que os homens só darão o melhor de si se estiverem completamente seguros quanto às mulheres que deixaram atrás de si, desprotegidas. Às vezes, eles mesmos declaram, sem alegar quaisquer razões mágicas, que a infidelidade de uma esposa ao matrimônio levará a nada os esforços de um marido ausente, empenhado em alguma trabalho de responsabilidade.

Diz-se que os incontáveis regulamentos de tabu a que as mulheres das comunidades selvagens estão sujeitas durante a menstruação são devidos a um horror supersticioso ao sangue e, sem dúvida, isto constitui um de seus determinantes. Mas seria errado menosprezar a possibilidade de que neste caso o horror ao sangue sirva também a propósitos estéticos e higiênicos, que, em todo caso, são obrigados a ocultar-se atrás de motivos mágicos.

Não tenho a menor ilusão de que apresentando essas tentativas de explicação me esteja expondo ao ataque de selvagens modernos e talentosos, com uma sutileza de atividade mental que excede todas as probabilidades. Parece-me inteiramente possível, no entanto, que o mesmo que acontece com nossa atitude para com a psicologia daqueles povos que permaneceram no nível animista, aconteça com nossa atitude em relação à vida mental das crianças, que, nós, adultos, não mais compreendemos, e cuja plenitude e delicadeza de sentimentos, em conseqüência, tão grandemente subestimamos.

Um outro grupo de observâncias de tabu, que até agora não foi explicado, merece menção, desde que admitem uma explicação familiar aos psicanalistas. Entre muitos povos selvagens existe uma proibição contra a guarda em casa de armas aguçadas ou instrumentos de corte. Frazer (1911b, 238) cita uma superstição alemã segundo a qual uma faca não deve ser deixada com o fio para cima, por temor que Deus e os anjos possam se machucar nela. Não poderemos identificar nesse tabu uma advertência premonitória contra possíveis ‘atos sintomáticos’ em cuja execução uma arma afiada poderia ser empregada por impulsos maldosos e inconscientes?




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