O mito e o xamã



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1

O mito e o xamã 

 

Julio Cezar Melatti 



 

Este artigo foi apresentado em 1963 como comunicação na VI Reunião 

Brasileira de Antropologia, e como tal publicado na Revista do Museu 

Paulista (Nova Série, vol. 14, 1963, pp. 60-70). Foi republicado na 

coletânea  Mito e Linguagem Social (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 

1970, pp. 65-76). Está publicado em inglês na coletânea, organizada por 

Patricia Lyon, Native South Americans (Boston: Little, Brown and 

Company, 1974, pp. 267-275).  

 

A presente comunicação



1

 tem por objetivo indicar a relação existente entre 

determinados índios craôs e as histórias que certos membros deste grupo indígena 

pretendem ter vivido ao se transformarem em xamãs. Possivelmente a mesma relação se 

apresente nos demais grupos timbiras, já que compartilham da mesma mitologia, 

dispõem de práticas xamanísticas similares, possuem uma organização social assentada 

sobre os mesmos princípios básicos e talvez uma origem comum, como quer sua 

tradição. Os dados etnográficos de Curt Nimuendajú, como veremos adiante, parecem-

nos autorizar também a pensar desse modo. 

 

Caracterização do xamã 

O xamã craô pertence geralmente ao sexo masculino. Um informante, contudo, 

afirmou existirem mulheres-xamã, as quais, porém, apenas se contentam em ver 

espíritos (karõ). O xamã exerce dois papéis distintos: o de “curador” (vayaka), quando 

usa seus poderes em benefício social; o de “feiticeiro” (kai), quando os aplica para 

causar danos e a morte. Naturalmente, ninguém se confessa feiticeiro, visto a ameaça de 

morte que paira sobre quem age como tal. De um modo geral um indivíduo só acusa de 

feiticeiro a alguns daqueles xamãs não considerados parentes seus. Portanto, talvez 

fosse legítimo abordar os casos de assassinato de feiticeiros, muito frequentes entre os 

craôs e nas demais sociedades timbiras, como um aspecto da rivalidade entre grupos de 

parentesco. Isso, porém, foge ao tema a que nos propomos. O conhecimento de plantas 

cujas folhas, raízes ou frutos que, esfregados sobre o corpo, ingeridos em mistura com 

água ou passados nas incisões feitas na pele, trazem o sucesso na caçada de certos 

animais, curam determinadas doenças ou melhoram a eficiência do indivíduo na corrida 

de “tora”, não é exclusivo do xamã; de um modo geral, todos os membros adultos do 

grupo, de acordo com os interesses de cada sexo, sabem utilizar alguns desses recursos. 

O xamã, entretanto, além de conhecer um número razoável de plantas mágico-

medicinais, pode ver os espíritos dos mortos, entrar em contato com eles e consultá-los; 

fala com determinados animais, de quem aprende novos remédios; possui substâncias 

mágicas dentro de seu próprio corpo; sabe tirar ou colocar feitiços; faz entrar novamente 

                                                 

1

 Estivemos nas aldeias dos índios craôs num período de cerca de quatro meses, de setembro de 1962 a 



janeiro de 1963, realizando nossa primeira etapa da pesquisa sobre a organização social desses índios, 

parte integrante do projeto “Estudo Comparativo das Sociedades Indígenas do Brasil”, do Prof. 

Roberto Cardoso de Oliveira.  



 

 

 



 

2

no corpo de alguém o espírito que dele se tenha retirado. São esses poderes que o 



distinguem dos outros membros da sociedade craô. 

Na sociedade craô nada se dá, nada se faz para outrem, sem que se receba algo em 

troca. O xamã não foge à regra: toda vez que exerce com sucesso seus poderes em favor 

de uma pessoa, esta o recompensa com dinheiro ou algum outro bem. Ao prestar 

determinados serviços à toda comunidade, como, por exemplo, fazer cessar uma chuva 

para permitir a realização de uma tarefa, ou atrair os peixes a fim de que sejam mortos 

numa tinguijada, tem também o direito a uma retribuição. Mesmo nas relações do xamã 

com o sobrenatural, este princípio se aplica: geralmente ele evita matar e comer animais 

da espécie daquele que acredita ter-lhe passado os poderes xamanísticos. 

 

O “mito individual” 

Como nos propusemos indicar a existência de uma relação, torna-se necessário 

dar a conhecer os elementos entre os quais ela ocorre. Comecemos por um deles: a 

maneira pela qual certos indivíduos se dizem haver transformado em xamãs. 

Resumiremos quatro depoimentos pessoais que selecionamos e a seguir apontaremos as 

uniformidades neles existentes. 

Em primeiro lugar temos a história do curador Zezinho (Ha’poro Waket), da 

aldeia do Posto. Contou-nos que, certa vez, quando ainda morava na Aldeia de Canto 

Grande, ficou doente. Ninguém ia caçar para ele. Resolveu sair mesmo sozinho à 

procura de algum animal para matar. Apesar das recomendações da mulher, partiu para 

a chapada. Sentia-se cada vez pior e, por isso, deitou-se com o corpo muito quente. Um 

gavião apareceu-lhe e se informou de suas atribulações. Retirou-se e voltou pouco 

depois com uma juriti, que Zezinho teve de comer crua mesmo. O gavião ordenou então 

que vomitasse; ele obedeceu e saiu uma pequena bola de sangue. Fez depois Zezinho 

ver a aldeia e a seguir recomendou-lhe cuidar, daí por diante, de todos aqueles que 

adoecessem. 

O segundo depoimento é o do índio Clóvis (Põhï’tóro Iatxï Tumai), irmão da 

mulher de Zezinho e que mora na mesma casa. Diz ele ter começado sua carreira de 

xamã nas proximidades da própria aldeia do Posto. Em certa ocasião adoeceu. Mesmo 

assim resolveu ir pescar, malgrado a oposição de sua irmã. Dirigiu-se ao Ribeirão dos 

Cavalos. Não conseguia pescar nada, mas os peixes e os jacarés ajuntavam cada vez 

mais à sua volta. Ficou com medo e quase correu. Por trás dele, no entanto, apareceu um 

peixe transformado em índio. Clóvis assustou-se, mas o peixe o acalmou. Talvez fora 

Deus 

2

 quem o enviara, segundo o informante, pois estava doente... O peixe pediu que 



lhe fizesse um cigarro e em seguida o defumou por algum tempo até sair de seu corpo 

gordura de porco, causa de todo o seu mal. O peixe demonstrou então desejo de torná-lo 

um curador. Em primeiro lugar, porém, quis saciar-lhe a fome e, por isso, tirando uma 

mesa, uma toalha, uma colher, um prato, arroz, carne de boi, galinha e, inclusive, café, 

de seu próprio corpo, serviu-lhe uma copiosa refeição. Enquanto comia, Clóvis olhava 

para a mulher do peixe e a desejava, mas nada podia fazer. Tendo-se fartado, viu a mesa 

e tudo o que continha desaparecer. O peixe então citou-lhe uma série de alimentos a 

serem evitados até a próxima lua nova. Depois introduziu uma porção de coisas no 

                                                 

2

 “Deus” é a tradução que os craôs geralmente dão ao termo Pït, isto é, Sol. Costumam também identificar 



Pïdluré (Lua) com São Pedro. 


 

 

 



 

3

corpo de Clóvis, inclusive um rádio, uma faca, uma tigela, arroz, carne de diversos 



animais etc.

3

  Clóvis começou a ver dali mesmo a aldeia dos canelas, a dos apinajés, 



Conceição do Araguaia, Carolina, enfim, todos os lugares. O peixe ordenou ainda que 

experimentasse os poderes dele recebidos antes de se retirar. Clóvis tomou um pouco de 

algodão e o jogou nas árvores: elas imediatamente pegaram fogo e ressoou uma 

trovoada. Voltou então para casa. Por ter quebrado os tabus alimentares que lhe foram 

impostos, perdeu todos os poderes. Antes de perdê-los, porém, esteve certa vez no céu. 

Subiu uma noite. Lá em cima viu as mesmas coisas que há aqui embaixo; notou a 

presença de índios, civilizados e também de animais. Todavia tudo era limpo e não 

havia folhas caídas pelo chão. Desceu logo a seguir.  

A terceira história foi vivida pelo jovem Ituëp, da Aldeia do Posto. Declarou-nos 

que foi um xupé, uma espécie de abelha, quem lhe doou poderes xamanísticos. Ele era 

ainda menino e morava na Aldeia de Canto Grande. Certo dia foi caçar veado. Estava 

olhando para uma serra, quando surgiu-lhe um xupé, que, inteirando-se dos motivos de 

sua presença naquele local, aconselhou-o a procurar caça em outra parte. Ituëp voltou 

para a aldeia e adoeceu: sentia o corpo quente demais. À noite o xupé veio até sua casa; 

transformou-se num homem preto de cabelos lisos e atirou-lhe uma substância na 

cabeça, no coração e nos braços, curando-o. Esta substância servia também para que 



Ituëp fizesse sarar as enfermidades de outros indivíduos. Ele, porém, nunca curou e nem 

fez mal a ninguém. Não quis mais ser curador e o xupé veio de novo até sua casa para 

reaver a substância mágica. 

Finalmente temos a história do xamã Aniceto (Mãpok Romró Intxotuk Ka’mõko), 

da Aldeia de Pedra Branca. Certa vez, nesta mesma aldeia, ele adoeceu. A cabeça lhe 

doía. Mandou então sua mulher para a casa do irmão dela e ficou sozinho, chorando... 

Uma seriema aproximou-se da casa, chegou à porta e cumprimentou Aniceto. Inteirada 

de sua enfermidade, doou-lhe “coisas” e marcou-lhe um encontro para dois dias depois. 

Aniceto foi procurá-la no local combinado e, com seu auxílio, curou-se. Para 

experimentar os poderes de Aniceto, a seriema pôs um feitiço em seu próprio filhote e 

pediu a ele que o retirasse. O índio extraiu um ovo de calango do pequeno animal e ele 

ficou bom. 

Estudando com atenção os quatro depoimentos acima apresentados, verificamos 

que eles possuem algo de comum entre si: narram eventos semelhantes colocados numa 

mesma ordem diacrônica. Podemos, por conseguintes, sintetizar cada uma dessas 

histórias em uma série de orações.

4

 Cada uma delas se constituiria na atribuição de um 



predicado a um sujeito. Se escrevêssemos cada relato no sentido horizontal, de modo 

que um ficasse debaixo do outro, as orações semelhantes se agrupariam em colunas no 

sentido vertical. Concluímos daí que as quatro histórias possuem a mesma estrutura. Se 

fizéssemos representar o conteúdo de cada coluna por uma só oração, teríamos um 

                                                 

3

 Os craôs estão em contato permanente com os brasileiros há mais de um século. Não deve, pois, causar 



surpresa que suas experiências sobrenaturais permitam a presença de pratos, tigelas, facas, rádio-

receptores etc. 

4

 

Tentamos utilizar aqui a técnica aconselhada por Lévi-Strauss: “chaque mythe est analysé 



indépendamment, en cherchant à traduire la succession des événements au moyen des phrases les plus 

courtes possibles. Chaque phrase est inscrite sur une fiche que porte un numéro correspondant à sa 

place dans le récit. On s´aperçoit alors que chaque carte consiste dans l'assignation d'un predicat à un 

sujet. Autrement dit, chaque grosse unité constitutive a la nature d'une relation”. Lévi-Strauss, Claude,  

“La Structure des Mythes” (Anthropologie Structurale,  Paris: Plon, 1958),  p. 233. 



 

 

 



 

4

esquema que poderia ser considerado o modelo desses relatos e se aproximaria do 



seguinte:  

1)

 



um homem adoece; 

2)

 



o homem está sozinho; 

3)

 



um animal aparece ao homem; 

4)

 



o animal cura a enfermidade do homem; 

5)

 



o animal alimenta o homem; 

6)

 



o animal dá poderes mágicos ao homem; 

7)

 



o homem experimenta os poderes recebidos; 

8)

 



o homem sobe aos céus; 

9)

 



o homem perde os poderes recebidos. 

Uma ou outra dessas unidades falta em algumas das histórias, mas a maioria delas 

está presente em todas. Algo tem de ser esclarecido a respeito dos dois últimos itens. A 

unidade no. 8 só aparece num dos depoimentos. Clóvis, o índio que pretende ter subido 

ao céu, diz tê-lo feito algum tempo depois de haver recebido os poderes xamanísticos, 

embora no relato original o peixe lhe prometa por várias vezes fazê-lo subir ao céu no 

momento mesmo em que lhe passa os poderes. Portanto, sua posição na sequência 

apresentada não tem de ser necessariamente aquela em que o colocamos. Aliás, os itens 

4 e 5 também podem aparecer com suas posições trocadas. Quanto ao item 9,  ele só 

pode aparecer, naturalmente, nos depoimentos daqueles que por um momento ou 

definitivamente deixaram de ser xamãs.  

 

O “mito coletivo” 

Na tentativa de apresentação de uma relação entre dois elementos, acabamos de 

descrever o primeiro, isto é, os “mitos individuais”, termo com que designamos as 

histórias vividas pelos xamãs ao receberem seus poderes sobrenaturais. Passemos então 

à exposição do segundo elemento, uma história conservada pela tradição tribal e em que 

todos os membros da sociedade craô acreditam e que resolvemos chamar de “mito 

coletivo” para distinguir das quatro já apresentadas. Trata-se das aventuras de um 

homem que subiu aos céus: Procuraremos resumir a versão que obtivemos do índio 

Messias (Hawot  Krëk Pïrïpok).  

Existiu outrora um índio chamado Tïrkrẽ. Certo dia dirigiu-se à roça, colheu 

raízes de mandioca, ralou-as e, terminado o serviço, adormeceu. Uma formiga, porém, 

entrou-lhe na orelha, que começou a inchar continuamente. Nesta ocasião sua aldeia 

estava mudando de sítio. A mulher dele, que o enganava, mantendo relações sexuais 

com o irmão do marido, pediu-lhe para esperá-la até que terminasse um jirau na nova 

aldeia. Tïrkrẽ, todavia, ficou esquecido e abandonado. Um bando de urubus o encontrou 

e resolveram cuidar do enfermo. Chamaram vários passarinhos, até que um deles 

conseguiu extrair a formiga de sua orelha. Em seguida os urubus o levaram para o céu, 

não sem antes discutirem com os urubus-reis, que se diziam mais resistentes para 

levantar o homem, o que os urubus negavam. Tendo chegado lá em cima, um gavião, 

muito bom curador, saiu para caçar e trouxe um jaó, o qual, Tïrkrẽ teve de comer cru. 

Depois o gavião caçou uma ema nova e ele comeu outra vez do mesmo modo. Em 

seguida um urubu desceu à terra e apanhou excrementos humanos, mas o índio recusou-

se a comer. Tïrkrẽ ficou bom. Realizou-se, então, no céu a festa de Pembkahëk; os 

índios naquela época não sabiam fazê-la;  Tïrkrẽ é que lhes ensinaria ao voltar do céu. 



 

 

 



 

5

Mais tarde, o gavião levou-o para visitar o raio (Akrãti). Este tomou buriti seco, 



acendeu-o no fogo e depois atirou-o para dentro de um rio, fazendo ressoar uma 

trovoada. Resolveu-se então experimentar os poderes de Tïrkrẽ: um pássaro, Tép'kriti

desceu e capturou dois peixes, colocando-os em cima de um “toro”.  Tïrkrẽ 

transformou-se em lontra e os comeu. Em seguida metamorfoseou-se em Tututi 

(pomba). O gavião desconfiou que o índio queria voltar para casa. Mandou  que os 

urubus lhe trouxessem os pertences para baixo e o próprio Tïrkrẽ desceu transformado 

em folha de sambaíba. Ficou em casa de sua mãe. Bom curador, percebendo agora que 

sua mulher o enganava com seu irmão, surpreendendo-os juntos um dia, transformou-se 

em formigão e picou a ambos nas partes sexuais. Mais tarde, quando eles sem o 

saberem vieram-lhe queixar-se do animal que os ferira, Tïrkrẽ os curou. Como sua 

mulher estava grávida mas teimasse em negá-lo, ele fez-lhe sair o filho do ventre. Um 

outro curador, chamado Khïok, desafiou Tïrkrẽ a mostrar seus poderes. Ele então se 

transformou em diversas aves, enquanto o desafiador não conseguiu nada. 

Temos outra versão desse mito em que o episódio final, o da disputa entre xamãs, 

é omitido e onde Tïrkrẽ é convidado a repetir o ato de Akrãti, jogando também buriti 

incendiado ao rio e provocando trovoada. Diversas informações isoladas acrescentam 

que no céu um gavião ensinou Tïrkrẽ a ser curador. 

 

Relação entre o “mito coletivo” e o “mito individual” 

Se tomarmos o mito apresentado acima e o dividirmos em pequenas unidades da 

mesma natureza daquelas que propusemos para os quatro relatos anteriores, nós o 

estaremos decompondo naquilo que Lévi-Strauss convencionou chamar de “mitemas”.

5

 



Colocando-se os mitemas na sequência em que se apresentam no mito, verificaremos 

existir uma conformidade quase total com o modelo dos depoimentos dos xamãs, já 

apresentado. Há, porém, algumas diferenças que vamos apontar. Em primeiro lugar, 

Tïrkrẽ entra em contato com mais de um ser e não apenas com um só animal, como o 

pretendem ter feito os xamãs entrevistados. Estes vários entes, entretanto, realizam as 

mesmas ações que nos depoimentos dos curadores cabem apenas a um só: curar, 

alimentar, doar poderes mágicos e fazer o receptor experimentá-los. Em segundo lugar, 

o mito de Tïrkrẽ apresenta dois elementos não encontrados no modelo que elaboramos: 

a) a não observação dos deveres conjugais pela mulher do curador; e b) a disputa entre 

xamãs. Ora, o primeiro elemento só poderia ocorrer entre xamãs casados, mas existem 

curadores solteiros; além disso, a irresponsabilidade da esposa apresenta dois aspectos: 

no início do mito ela serve para explicar o estado de abandono, de isolamento, em que 

ficou Tïrkrẽ e isso satisfaz ao nosso modelo. No final do mito ela se torna pretexto para 

o xamã usar seus recursos como feiticeiro, isto é, para causar dano, eventualidade a que 

está sujeito qualquer curador craô, embora nunca a revele. Quanto à disputa de xamãs, 

ela se refere, por certo, à confirmação dos poderes mágicos pela comunidade. Aqueles 

xamãs que falhassem fragorosamente na utilização de suas forças, cairiam no 

ostracismo. Talvez isso esteja relacionado com a devolução ou perda dos poderes, como 

vimos em dois dos depoimentos já transcritos resumidamente. Seria uma explicação 

para um fracasso de efeito temporário ou definitivo no prestígio perante a comunidade. 

Acrescente-se que esses dois itens também faltam em outro mito craô que, no 

mais, segue o modelo que apresentamos. Trata-se da história de um menino barrigudo e 

                                                 

5

 “La Structure des Mythes”, pp. 233 e 236. 




 

 

 



 

6

comedor de terra que foi levado por um jacaré para o seio das águas de um ribeirão. O 



jacaré curou-o e alimentou-o durante um certo período, enquanto o ensinava a cantar e a 

curar. Depois de instruído, o menino voltou à aldeia, onde transmitiu para os outro 

índios a arte de cantar. 

Cremos poder concluir, portanto, que os “mitos individuais” vividos pelos xamãs 

e certos mitos aceitos e conhecidos através da tradição por toda a sociedade craô, como 

o de Tïrkrẽ, se adaptam ao mesmo modelo; possuem, assim, estruturas isomórficas. A 

relação que desejávamos indicar era, pois, uma relação de identidade. Alguns 

indivíduos, se não todos, ao se tornarem xamãs, reviveriam o mito de Tïrkrẽ

 

O problema do aprendizado 

Não dispomos de informação suficiente para afirmar com certeza que todos os 

xamãs tenham revivido esse mito.  Não sabemos se haveria um outro meio de alcançar o 

status de curador. De toda a maneira o indivíduo teria necessariamente de aprender de 

alguma forma as técnicas xamanísticas. Colocando o problema em outras palavras: 

conhecemos o único modo — ou um dos modos — pelo qual alguém pensa ter-se 

tornado xamã, mas não sabemos a maneira por que aprendeu realmente a agir como tal, 

isto é, como foi adestrado. 

Nossos dados indicam que o candidato a xamã aprende com curadores mais 

experimentados (seria um aprendizado formal) e que existe também entre os indivíduos 

familiarizados com a esfera da magia uma certa observação mútua (seria parte de um 

aprendizado informal). Não temos, porém, detalhes sobre tal aprendizado. 

Segundo Curt Nimuendajú, entre os ramcocamecrás, um aprendiz de xamã deve 

abster-se de bolos de carne (“paparutos”), e qualquer outra espécie de carne durante um 

mês; deve evitar relações sexuais e esfregar no corpo pedaços de uma certa raiz 

amarela, para ser visitado pelos espíritos, que finalmente lhe aparecerão em sonhos. 

Depois de anunciar esse resultado na praça, será considerado xamã.

6

 Ainda entre os 



mesmos índios, um enfermo pode procurar instrução com os espíritos de seus ancestrais 

sem auxílio do curador. Para isso, faz-se mister o isolamento: deve fazer um tapume de 

esteiras em torno de sua cama, usar bastão de cocar e evitar conversar com outras 

pessoas. Pode assim esperar vê-los em sonho.

7

 O índio apinajé, como podemos deduzir 



das informações de Nimuendajú, atinge o status de xamã com ajuda de uma visão 

sobrenatural ou mesmo sem ela. Como exemplo do primeiro caso, temos a história de 



Katam 

8

, que por duas vezes sonhou com seu irmão falecido, o qual lhe aconselhava a 



cuidar do bem estar da aldeia e lhe prometia ensinar a curar as doenças. Tempos depois 

Katam experimentou curar seu chefe, Matuk, e, tendo-o conseguido com sucesso, 

passou a ser considerado por todos como xamã. No segundo caso, o xamã escolhe um 

rapaz depois de examinar-lhe as palmas das mãos e os olhos. Ensina-lhe o uso do 

tabaco, o jejum, a abstinência sexual e lhe esfrega as mãos e o peito com substâncias 

mágicas. Finalmente, o mestre tira as próprias forças das mãos e do peito, passando-as 

                                                 

6

 Nimuendajú,  Curt,  The Eastern Timbira  (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 



1946 [University of California Publications in American Archaeology and Ethnology, vol. 41] ), p. 

239. 


7

 The Eastern Timbira, p. 237. 

8

 Nimuendajú, Curt,  “Os Apinayé” (Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, tomo XII, Belém, 1956), 



p. 109.  


 

 

 



 

7

ao aprendiz. Entretanto, referindo-se a esta última forma, Nimuendajú afirma que nunca 



viu um destes discípulos.

9

 



Podemos supor que o aprendizado entre os craôs, quer formal, quer informal, ao 

invés de ser um processo independente para conduzir à situação de xamã, combinar-se-

ia com o reviver do mito. É o que as informações de Nimuendajú, principalmente sobre 

os ramcocamecrás, que já citamos, nos fazem imaginar: a abstinência de certos 

alimentos e as demais regras a serem seguidas pelo discípulo de xamã teriam por função 

colocá-lo num estado de fraqueza física e numa tal situação psicológica que culminaria 

no pretenso contato com os espíritos. Nimuendajú não nos descreve em detalhes o 

sonho de nenhum desses aprendizes, mas não seria impossível  que tivesse a mesma 

estrutura do mito craô de Tïrkrẽ. Aliás, os ramcocamecrás dispõem pelo menos de dois 

mitos que se adaptam ao mesmo modelo, já esquematizado no decorrer desta 

comunicação: o de Yawé e o de Hahak.

10

 E os apinajés apresentam um: “a visita ao 



céu”.

11

 Todos os três seriam, portanto, outras versões do mito de Tïrkrẽ.  



Este apelo aos dados de Nimuendajú visou a demonstrar que: a) entre os demais 

timbiras nada parece impedir que o aprendiz de xamã reviva o mito de Tïrkrẽ; b) se os 

craôs possuírem um aprendizado formal semelhante, ele pode não só combinar-se com o 

reviver do referido mito, como também favorecer o aparecimento desse fenômeno 

psicológico. 

 

Conclusão 

Se aceitamos como realmente existente a relação que acabamos de apontar entre o 

advento de um novo xamã e determinado mito, podemos chegar a três conclusões: 

a)

 

a par do aprendizado objetivo, a sociedade craô oferece aos candidatos ao 



xamanismo uma via de acesso subjetiva estruturada, cujo conhecimento 

eles adquirem através de um mito; 

b)

 

como todos os membros desta sociedade acreditam neste mito, o xamã, 



tendo-o revivido, adquire um precedente considerado real, o que lhe 

permite acreditar sinceramente nos próprios poderes, legitimando sua 

ação

12



c)

 

cada sucesso do xamã contribui para que os membros da sociedade 



revigorem cada vez mais sua crença no mito que o xamã reviveu. 

Esta comunicação se inspirou no artigo de Lévi-Strauss “A Estrutura do Mito”,

13

 

em que o autor procura uma fórmula para interpretação dos mitos. Aqui, entretanto, não 



foi nossa intenção explicar, mas identificar algumas versões de um mesmo mito. Quem 

se propuser a interpretá-lo, ao consultar toda a mitologia  publicada dos timbiras, talvez 

julgue poder incluir como versões dele muitas variantes que à primeira vista parecem 

                                                 

9

 “Os Apinayé”, p. 114. 



10

 The Eastern Timbira, pp. 246 e 247. 

11

 “Os Apinayé”, pp. 138 e 139. 



12

 Como nos mostrássemos espantado quando o curador Zezinho nos disse que um gavião lhe ensinara a 

curar, ele indagou: “E não foi o gavião quem ensinou a Tïrkrẽ? “, como se dissesse: Se Tïrkrẽ, em cuja 

existência e veracidade de sua história todos acreditamos, recebeu ensinamentos de um gavião, por 

que não pode acontecer o mesmo comigo? 

13

 “La Structure des Mythes”, op. cit. 




 

 

 



 

8

estar ligadas a motivos inteiramente diversos. Tal seria o caso dos mitos de “Aukê”, “A 



anta que emprenhou a cunhã”, “A mulher e a cobra”, colhidos por Harald Schultz entre 

os craôs.

14

 A procura de todas as versões desse mito e sua interpretação evidentemente 



contribuiria para uma compreensão maior da função do xamã dentro da sociedade craô. 

 

Nota suplementar 



Ao ser republicado  na coletânea Mito e Linguagem Social (Rio de Janeiro: 

Tempo Brasileiro, 1970), foi acrescentada a esse artigo a seguinte nota 

suplementar (pp. 75-76): 

Faz sete anos que este artigo foi apresentado sob a forma de comunicação à VI 

Reunião Brasileira de Antropologia, em São Paulo. Acho que suas conclusões são ainda 

hoje perfeitamente aceitáveis e que o artigo continua correto em suas linhas gerais, 

mesmo depois de ter coletado novos dados em posteriores períodos de campo entre os 

craôs. Não obstante, no que tange a certos detalhes, é preciso fazer algumas ressalvas.  

Na referida Reunião objetou-se que o médico-feiticeiro craô não vem a ser 

verdadeiramente um xamã. Devo dizer que, na verdade, apliquei o termo xamã num 

sentido bastante amplo. Se considerarmos o problema da perspectiva de Mircea Eliade, 

que toma o xamanismo no seu sentido mais restrito como um fenômeno antes de tudo 

siberiano e centro-asiático, associando-o, parece, a um conjunto de crenças inter-

relacionadas, dificilmente o médico-feiticeiro craô poderá ser reconhecido como um 

xamã. Mas se examinarmos a questão segundo a perspectiva mais ampla de Baldus (“O 

xamanismo”, Revista do Museu Paulista, N.S., vol. 16, São Paulo, 1965/66), talvez seja 

possível reconhecê-lo como um xamã. De qualquer maneira, esta nota não é o lugar 

mais adequado para se tentar resolver o problema, uma vez que isso acarretaria uma 

longa exposição e discussão de dados. Basta por ora lembrar que o uso dos termos xamã 

ou médico-feiticeiro em nada altera os argumentos e as conclusões do artigo.  

Há, porém, uma ressalva mais importante a fazer. Não são apenas os animais que, 

segundo os craôs, transmitem poderes mágicos aos seres humanos. Vegetais como a 

mandioca ou o abacaxi, heróis míticos como Sol e Lua, e outros elementos como a 

cachaça podem fazer um indivíduo se transformar em xamã. Mas a passagem dos 

poderes mágicos por iniciativa de vegetais ou de outros seres ocorre de maneira análoga 

aos relatos contidos no artigo. Posso dar um rápido exemplo. Contou-me o chefe da 

aldeia do Posto que certa vez uma mulher foi à roça, comeu um abacaxi e colheu mais 

uma porção deles a fim de levá-los para casa (talvez o informante quisesse se referir a 

ananás e não a abacaxi). Ao chegar, sentiu dor de barriga, provocada pelo suco de 

abacaxi, e começou a ver o próprio abacaxi, que desejava falar com ela e fazê-la 

curandeira. Mas como uma outra pessoa dirigiu-se a ela, o abacaxi foi embora e a 

mulher perdeu a oportunidade de se tornar xamã. Note-se, pois, que a mulher estava 

doente e estava sozinha; mas a quebra de sua solidão impediu que recebesse os poderes 

mágicos. Enfim, o modelo que construímos segundo os quatro relatos examinados no 

artigo — 1) um homem adoece; 2) o homem está sozinho; 3) um animal aparece... etc. 

— deve ser retificado de modo a dar conta desses novos dados, podendo ser expresso 

assim: 1) um indivíduo (do sexo masculino ou feminino) adoece; 2) o indivíduo está 

sozinho; 3) um ser não-humano aparece... etc.  

                                                 

14

 Schultz, Harald, “Lendas dos índios Krahó” (Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. IV, São 



Paulo, 1950, pp. 49-163). 


 

 

 



 

9

Além disso, o item 8 do modelo parece que pode ser suprimido. Dos vários relatos 



que tomei, apenas um xamã admite ter visitado o céu; e isso não teria ocorrido no 

momento em que recebeu seus poderes mágicos. A assunção ao céu do herói mítico 



Tïrkrẽ simplesmente acentua o fato de estar separado dos seres humanos no momento 

em que recebe seus poderes mágicos: reitera a necessidade do isolamento. Portanto, a 

supressão do item 8 do modelo dos relatos não afeta a minha conclusão, segundo a qual 

o indivíduo, ao se tornar xamã, revive o mito: o fato do indivíduo estar isolado 

juntamente com o ser que lhe dá os poderes equivale ao período de separação de Tïrkrẽ 

no céu.  

Do mesmo modo, o item 9 pode também ser  suprimido. No mito de Tïrkrẽ  este 

herói não perde seus poderes mágicos. E parece que os xamãs também não perdem os 

seus. Aqueles que me afirmaram ter deixado de ser xamãs, percebi que continuavam a 

exercer normalmente suas atividades mágicas. Portanto, mentiram nas informações que 

me forneceram, provavelmente com receio de que eu os colocasse numa situação 

embaraçosa, exigindo que dessem uma demonstração de seus poderes ou lhes fizesse 

perguntas com relação ao delicado problema das acusações de feitiçaria.  

E agora duas ressalvas de menor importância. Informações posteriores à redação 

do artigo me fazem desconfiar que os termos kai vayaka não se traduzem exatamente 

por “feiticeiro” e “curador”, respectivamente, podendo ser usados ambos no segundo 

sentido. Mas não disponho de elementos suficientes para resolver a questão. Por fim, o 

ser chamado Akrãti,  que identificamos com o raio, é na verdade identificado com os 

aerólitos, como se pode ver no artigo de Vilma Chiara (“Folclore Krahó”, Revista do 

Museu Paulista, N.S., vol. 13, São Paulo, 1961/62), que apresenta também uma versão 

do mito de Tïrkrẽ.  

Essa mesma nota foi também acrescentada na versão do artigo para o inglês 

na coletânea Native South Americans, organizada por Patricia Lyon (Boston 

e Toronto: Little, Brown and Company, 1974), à qual foi acrescentado mais 

um parágrafo no final (p. 275):  

Finalmente, uma vez que este artigo foi escrito do modo mais breve possível de 

modo  a ser lido na VI Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em São Paulo em 

1963,  resumimos o mito de Tïrkrẽ consideravelmente, omitindo, devido a nossa 

inexperiência, detalhes que agora julgamos importantes.  Assim, deixamos de dizer que 



Tïrkrẽ,  ao comer carne crua de jaó, vomitou o sangue desse pássaro. No que tange ao 

teste dos poderes de Tïrkrẽ,  a inciativa parece ter vindo do pássaro Tép’kriti [martim-

pescador] (do gênero Ceryle),  mas nossas notas de campo não são claras sobre esse 

ponto. Quanto à disputa entre Tïrkrẽ e Khïok, foi o primeiro que desafiou o segundo, 



mas provocado pelas dúvidas de Khïok

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