Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Caxias do Sul - RS – 15 a 17/06/2017
da palavra.
Boçal
, de acordo com o dicionário Michaelis , tem pelo menos dois
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significados: 1. referente a ou escravo negro recém-chegado da África, que ainda não
falava o português e 2.
p.ext. ignorante, rude, tosco. Algo ou alguém privado de
inteligência e/ou comportamentos humanos
.
Habitualmente, hoje usamos com a
segunda conotação, mas é inevitável conjecturar que é possível que a primeira definição
tenha dado origem à segunda. A escolha da comparação não foi proposital, foi até
mesmo antes de saber que originalmente a palavra também tem relação com imigrantes
africanos, como é o caso do personagem da reportagem. Embora o termo tenha sido
escolhido para se referir ao tratamento dado a ele, são essas sutis conceituações que ao
longo do tempo criaram as linhas abissais refletidas por Santos (2002).
Conforme Santos (1988), pode falar-se de um modelo global de racionalidade
científica, que admite variedade interna, mas que se distingue e defende, por via de
fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento
não-científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso
comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluíram,
entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e
teológicos).
Santos (2002) sugere, a partir disso, que há um paradigma dominante, fruto
dessa racionalidade científica. Ao mesmo tempo, este paradigma não está sendo
suficiente para explicar a complexidade do mundo. Pelo contrário, é insuficiente e, não
à toa, passa por uma crise. As consequências desse colapso podem ser percebidas em
reportagens como esta, cujos resultados veremos a seguir.
A Análise Pragmática e Cultural da Narrativa, de Luiz Gonzaga Motta (2004),
considera a narrativa como parte de um todo, uma linearidade que integra passado,
presente e futuro. Busca-se entender como os sujeitos sociais constroem os seus
significados através da apreensão, compreensão e expressão narrativa da realidade. Sem
dúvida, como veremos nesta reportagem, os personagens são construções, e não apenas
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Disponível em
http://michaelis.uol.com.br
. Acessado em 12 de março de 2017.
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deste texto, mas de um contexto maior, já culturalmente constituído e reproduzido,
mesmo que inconscientemente. Parte do paradigma dominante e do pensamento abissal.
Para Motta (2004), nenhuma narrativa é ingênua: quem narra sempre tem uma
intenção de narrar. Se considerarmos ainda os apontamentos de Motta (2004), de que a
narrativa faz parte de uma totalidade, que inclui passado, presente e futuro, as
coberturas que envolvem negros ou imigrantes costumam carregar preconceitos
implícitos, generalizações, superficialidade ou são sobre personagens que muitas vezes
nem são ouvidos.
Em sua metodologia, Motta (2004) propõe cinco movimentos: 1º -
Recomposição da intriga ou do acontecimento jornalístico; 2º- identificação dos
conflitos e funcionalidade dos episódios; 3º - construção de personagens jornalísticas
(discursivas); 4º - Estratégias comunicativas; 5º - A relação comunicativa e o “contrato
cognitivo”. Na análise abaixo, procuramos mesclar estes movimentos para compreender
melhor a narrativa.
Sobre a recomposição da intriga, a cobertura em casos de estupro tem uma
importância inquestionável. Trata-se de um crime, um acontecimento jornalístico.
Porém, neste caso temos pelo menos dois outros fatores que interferem na
funcionalidade dos episódios e identificação dos conflitos: o suspeito é imigrante, de um
país da África e negro. Já tomando por base uma reconstrução histórica de episódios
semelhantes, não raro há superficialidade nas coberturas e indícios de preconceito,
como já aconteceu em reportagens sobre haitianos, por exemplo.
Se pensarmos através do paradigma científico apontado por Santos (2010), a
reportagem poderia ser analisada com estratégias discursivas de caráter objetivo: há
referências de realidade, fontes, inclusive o nome do suspeito, há local, imagem,
entrevistas.
Medina (2008) traz questionamentos semelhantes aos de Santos (2002) quando
critica o positivismo, pelo reducionismo. Neste, há uma valorização do que pode ser
verificado, o que é objetivo, e o desprezo à sensibilidade e à subjetividade do repórter.
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