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conta também do receptor. Fuentes, Ramos e Paz trabalham com conceitos que
desenvolveram durante anos, apontando a visão de parte da intelectualidade do seu tempo,
interferindo sobre ela suas instâncias de formação rumo à leitura de um tempo, diferente
daquela que outros dedicariam em tempos de um mundo já em outros contornos, com um
contexto de época, de tendências e teorias distintas. Fuentes e seus antecessores trabalham
com o que tinham à época à mão, com os meios de estudo, com a forma e metodologia de
estudar de que dispunham, e com as ideias e teorizações cabíveis, talvez, ao seu tempo.
A ação mais direta da literatura sobre e com imaginários nacionais já foi mais evidente
na formação de identidades nacionais, na ação de tentar instituir e chamar importância para o
destaque da chamada cor local. Tal intencionalidade é atualmente, a meu ver, mais discutível,
ainda que, conforme procurei demonstrar, possa equivaler-se ao demarcamento de
pensamentos de resistência, ideologias de teor libertário caras ao intelectual que quase sempre
se propõe, como parte de uma coletividade, também um porta-voz dessa mesma coletividade.
No que toca às influências intelectuais de e em Fuentes, acerca de Octavio Paz é
importante observar que o impacto de seus argumentos não recai apenas sobre seus
conterrâneos mexicanos. Por isso, procurei destacar também a busca inicial de uma
intelectualidade chicana por encontrar suas raízes no México e na leitura de seus intelectuais
como uma espécie de pedra fundante desde a qual dariam vez ao poder dinâmico e de
resistência chicana in USA. A leitura de, e admiração intelectual chicana por autores clássicos
como Paz pode ser mesmo observada, por exemplo, no texto de uma carta de Tomás Rivera
endereçada ao intelectual mexicano, pouco tempo após a publicação de seu ...y no se lo tragó.
Nela, Rivera comunica que envia adjunta sua obra que vai “como testimonio de admiración y
también como testimonio de uma consciencia despertada desde aquel momento en que leí El
laberinto de la soledad.” (RIVERA, [1972] 2012, p. 262 – grifo de datilografia do autor).
A admiração a que se refere Tomás Rivera pode ainda ser atestada se trazemos, a duas
pontas de medida, o ensaio paziano “El pachuco y otros extremos”, componente de El
laberinto, e o conto riverano “El Pete Fonseca”. O conto de Rivera, excluído da composição
final de seu único romance por razões mais bem temáticas que estruturais, tem por
protagonista um sujeito “chicano” burlesco e enganador que se aproveita de uma mãe solteira
e seus filhos, desaparecendo ao fim da história com o carro e todo o dinheiro da família. Pode-
se, assim, questionar se o pachuco criado por Rivera não acaba por re(a)presentar talvez os
mesmos extremos de que fala Paz em seu ensaio. A resposta talvez esteja no fato de que em
um primeiro momento, na tentativa de afirmação de uma identidade chicana, a figura do
pachuco abordada por Paz foi explorada por um emergente discurso chicano politizado entre
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os anos de 1960 e 70 como marca de diferença, até, enfim, ser tomado como estereótipo (Cf.
RAMOS e BUENROSTRO, 2012, p. 16).
Nesse aspecto, são tão passíveis de relatividade e suscetíveis a discussões as situações
evocadas, que um conselho mordaz de Roger Bartra (2000, p. 77) pode também servir de
interessante aviso ao leitor/receptor:
[E]s necesario un proceso de decodificación-recodificación en el que los signos de
identidad cultural descifrados deben ser enmascarados de nuevo con nuestros
propios signos (el proceso que va del desenmascaramiento de inferioridades,
hipocresías y soledades mexicanas a la reconstrucción del canon del axolote).
Tal aconselhamento, segundo minha visão, pode esbarrar ainda, como venho buscando
atrair a atenção, nas instâncias receptivas do leitor/receptor e em sua responsabilidade para
com as muitas tramas das quais se aproveitam as teias de um imaginário. A literatura, a ficção
é responsável por sua realidade interna; mas, nunca é demais atentar-se para a identificação
possível com o mundo irrealizado, o qual pode, porém, ser tomado como real por um receptor
enredado pela ficção do como se.
De minha parte, posso dizer que aquele que se aventure a estar presente, por exemplo,
entre os dois (e mesmos) lados bi-fronteiriços que são El Paso (EUA) e Juárez (México)
poderá receber um abraço que o traga junto à frase “En el México dominado toma acá un
abrazo mexicano”; e ouvir em congressos afirmações intelectuais de assumida identidade
chicana por rechaço, mesmo linguístico, ao discurso hegemônico de ambos os lados; ou ainda
ouvir sentenças como “Acá no les gusta eso de ser chicano, gente que reniega sus propias
raíces”; ou mesmo ver um ativista chicano, de marcado sotaque inglês estadunidense em seu
espanhol, chamando a gringos “eses anglo-americanos”, esses “pinche gringos”, qual talvez
diria, embarcada quem sabe em uma ficção de cidadania, uma professora mexicana US citzen
radicada em uma universidade de Pittsburgh, Pensilvânia (EUA). Todos aqui anônimos,
entretanto, como as vozes corais que adentram as narrativas de Rivera em ...y no se lo tragó la
tierra.
Reitero, por fim, que a configuração e a existência, resistência e caráter de
permanência de um imaginário só se dá em comparação com o real vivido. Caberia ao leitor,
então, à guisa de uma proposta platônica ir de hipótese em hipótese até chegar ao ponto que
não admite hipóteses. Mas, não raro, o receptor o que faz é ir de imagens em imagens até que
tome como princípio de tudo o imaginário. Nesse tocante, o valor de envolvimento de uma
obra literária toma o leitor como fosse um atalho para esse tão difícil princípio de tudo,
deixando-o, no espaço ao mesmo tempo ínfimo e infinito do toque do Deus e do Adão de
Michelângelo, nos liames (im)possíveis da complicada fronteira entre o real e o imagético.
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