Boaventura de sousa santos



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Para além do Pensamento Abissal | 1

esta redução preconiza a eliminação do âmbito contratual de aspectos deci‑

sivos para a protecção dos consumidores, aspectos que, por esta razão, se 

tornam extracontratuais e ficam à mercê da benevolência das empresas. Ao 

assumirem valências extracontratuais, as agências privadas de serviços assu‑

mem as funções de regulação social anteriormente exercidas pelo Estado. 

Este, implícita ou explicitamente, subcontrata a estas agências para‑estatais 

o desempenho dessas funções e, ao fazê‑lo sem a participação efectiva nem 

o controlo dos cidadãos, torna‑se conivente com a produção social de 

 fascismo contratual. 

A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Existe sempre 

que actores sociais com forte capital patrimonial retiram ao Estado o con‑

trolo do território onde actuam ou neutralizam esse controlo, cooptando 

ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre 

os habitantes do território sem a participação destes e contra os seus inte‑

resses. Na maioria dos casos, estes constituem os novos territórios coloniais 

privados dentro de Estados que quase sempre estiveram sujeitos ao colo‑

nialismo europeu. Sob diferentes formas, a usurpação original de terras 

como prerrogativa do conquistador e a subsequente “privatização” das 

colónias encontram‑se presentes na reprodução do fascismo territorial e, 

mais geralmente, nas relações entre terratenientes e camponeses sem terra. 

As populações civis residentes em zonas de conflitos armados encontram‑se 

também submetidas ao fascismo territorial.

7

O fascismo social é a nova forma do estado de natureza e prolifera à 



sombra do contrato social sob duas formas: pós‑contratualismo e pré‑con‑

tratualismo. O pós‑contratualismo é o processo pelo qual grupos e interes‑

ses sociais até agora incluídos no contrato social são dele excluídos sem 

qualquer perspectiva de regresso: trabalhadores e classes populares são 

expulsos do contrato social através da eliminação dos seus direitos sociais 

e económicos, tornando‑se assim populações descartáveis. O pré‑contratua‑

lismo consiste no bloqueamento do acesso à cidadania a grupos sociais que 

anteriormente se consideravam candidatos à cidadania e tinham a expecta‑

tiva fundada de a ela aceder: por exemplo, a juventude urbana habitante 

dos guetos das megacidades do Norte global e do Sul global.

8

 

Como regime social, o fascismo social pode coexistir com a democracia 



política liberal. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capita‑

lismo global, trivializa a democracia até ao ponto de não ser necessário, nem 

sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo. 

7

  Para o caso da Colômbia, ver Santos e Garcia Villegas, 00.



8

  Uma análise eloquente pode ser encontrada em Wilson, 987.




1 | Boaventura de Sousa Santos 

Trata‑se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fas‑

cismo que nunca existiu. De facto, é minha convicção que podemos estar 

a entrar num período em que as sociedades são politicamente democráticas 

e socialmente fascistas. 

As novas formas de governo indirecto constituem também a segunda 

grande transformação da propriedade e do direito de propriedade da era 

moderna. A propriedade, e, mais especificamente, a propriedade dos terri‑

tórios do Novo Mundo, foi, como mencionei inicialmente, o ponto chave 

subjacente ao estabelecimento das linhas abissais modernas. A primeira 

transformação teve lugar quando a propriedade sobre as coisas se expandiu, 

com o capitalismo, à propriedade sobre os meios de produção. Como Karl 

Renner (965) tão bem descreveu, o proprietário das máquinas transformou‑

‑se no proprietário da força de trabalho dos trabalhadores que nelas ope‑

ravam. O controlo sobre as coisas transformou‑se em controlo sobre as 

pessoas. Claro que Renner desvalorizou o facto de esta transformação não 

ter ocorrido nas colónias, uma vez que o controlo sobre as pessoas era a 

forma original de controlo sobre as coisas, sendo que este último incluía 

tanto as coisas humanas, como as não‑humanas. A segunda grande trans‑

formação da propriedade tem lugar, muito além da produção, quando a 

propriedade de serviços se torna uma forma de controlar as pessoas que 

deles necessitam para sobreviver. Usando a caracterização do governo colo‑

nial em África proposta por Mamdani (Mamdani, 996: cap. ) o novo governo 

indirecto promove uma forma de despotismo descentralizado. O despotismo 

descentralizado não choca com a democracia liberal, antes a torna progres‑

sivamente mais irrelevante para a qualidade de vida de populações cada vez 

vastas. Sob as condições do novo governo indirecto, o pensamento abissal 

moderno, mais do que regular os conflitos sociais entre cidadãos, é solicitado 

a suprimir conflitos sociais e a ratificar a impunidade deste lado da linha, 

como sempre sucedeu do outro lado da linha. Pressionado pela lógica da 

apropriação/violência, o próprio conceito de direito moderno – uma norma 

universalmente válida emanada do Estado e por ele imposta coercivamente 

se necessário – encontra‑se assim em mudança. Como exemplo das mudan‑

ças conceptuais em curso está a emergir um novo tipo de direito que, eufe‑

misticamente, se denomina “direito mole”, soft law.

9

 Apresentado como a 



9

  Uma vasta literatura tem vindo a ser produzida nos últimos anos teorizando e estudando empi‑

ricamente novas formas de governo da economia que assentam na colaboração entre actores não‑

‑estatais (firmas, organizações cívicas, ONGs, sindicatos, etc.) em lugar da regulação estatal de cima 

para baixo. Apesar da variedade de designações sob as quais os cientistas sociais e académicos do 

direito têm vindo a prosseguir esta abordagem, a ênfase recaí mais na “moleza” do que na dureza, 

na obediência voluntária mais do que na imposição: “regulação responsiva” (Ayres e Braithwaite, 

99), “lei pós‑regulatória” (Teubner, 986), “lei mole” (Snyder, 99, 00; Trubek e Mosher, 00; 




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